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segunda-feira, abril 23

A bata fendida de cima a baixo



Na cama um, Levy Martins, judeu, 59 anos, empresário. A enfermeira Cláudia com a sua voz de barítono perguntou se devia pronunciar Levy à maneira francesa ou se um Levy grave. O senhor Levy, habituado à dúvida, pronunciou de imediato o seu nome em francês. Ocupava a cama toda. Homem largo e baixo, carnes maciças, olhos profundos e seguros, barbas longas e frisadas que lhe escondiam o pescoço. Num rosto carregado um nariz bem definido, cabelo revolto puxado para trás deixavam à vista duas longas entradas. Só os braços rotundos marcados por nódulos gigantescos, intumescências arroxeadas e múltiplas picadas denunciavam um passado de cirurgias, enfartes e diabetes, que o levavam a reivindicar, impacientemente, a urgência do cateterismo agendado. Já conhecia as demoras hospitalares, tinha fome, queria ir para casa cedo.
- Enfermeira, por favor, traga-me o urinol.

Na cama três, o senhor Francisco. Transportaram-no para o quarto por volta das dez e meia da noite. O senhor Francisco vinha enrolado em si e sobre a cadeira de rodas. Os braços longos e curvos, as mãos  ósseas e esquálidas caíam pelas pernas a baixo e fechavam-no ainda mais. Puxaram-no penosamente pelo tronco, entreabriu-se a custo com gemidos guturais, quase inaudíveis. Colocaram o corpo na cama.

- Vá lá, Senhor Francisco ajude um bocadinho.

Pela parte de trás da estúpida bata fendida, o corpo tolhido expunha-se de cima a baixo: completamente seco, descarnado, de pele esquálida que lhe desenhava as vértebras, a pélvis, os fémures longos, de um amarelo translúcido que se espalhava por todo o lençol. A cabeça inclinada para trás afundava-se na almofada, e os olhos, salientes num rosto sugado pelo vácuo, fixavam a parede. A boca sempre aberta, chupada e imóvel, não articulava nada.

– Vá lá, senhor Francisco beba um bocadinho de água.

 E a água escorria pelos cantos da boca fora. Engasgava-se em pequenas convulsões sem que o corpo petrificado se soltasse.
- Descanse agora um pouco, senhor Francisco.

Mas não. O Senhor Francisco não parou mais, numa luta desigual, lenta, numa agitação caótica com o lençol que o cobria, com a fralda, com a gaze que lhe envolvia os dedos dos pés, com a bata verde fendida presa por um simples laço ao pescoço, numa agonia tremenda como se tudo estivesse feito contra ele.
Exausto. Completamente nu. O olhar paralisado, obtuso, fito na porta, como quem espera por ser chamado.

- Oh, senhor Francisco, o que é isto?
- Está todo molhado! Isto não se faz, 

E eu ali, 59 anos, salvo por um cateterismo, sem dor, perante um quadro lúgubre de final da Idade Média - a degradação de um corpo descarnado e ressequido, e o alerta «Tu serás em breve como eu um cadáver horrendo pasto dos vermes» (túmulo do Cardeal Jean de la Grange).

segunda-feira, fevereiro 5

O gordo gato preto


Durante meses a fio, na hora de dormir, um pequeno livro, a História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar, foi o preferido das minhas filhas. Não sei quantas vezes contei esta história do chileno Luis Sepúlveda. A repetição, noite após noite, levava-me a redesenhar partes do conto, a dar uma dimensão diferente a certas personagens, a abreviar certas passagens. Mas nunca consegui alterar, sem a imediata correção e um pequeno ralhete, as etapas fundamentais da promessa do gordo gato preto, Zorbas. Quando a gaivota finalmente voava e a luz se apagava, a Inês, a mais nova, pedia-me para ficar um pouco mais. Deitava-me transversalmente aos pés dela e esperava que adormecesse. Escutava, imóvel, quase em apneia, que a respiração suavíssima se tornasse profunda, que o corpo se soltasse. Por vezes, quando em movimentos muito lentos antecipava a saída, a Inês intersectava-me com um pedido sussurrado: pai …. E eu voltava à posição inicial. Imóvel de novo. Naquela quietude, aprendi a interpretar todos os sinais vindos daqueles corpos. No silêncio, a transportar-me para um plano paralelo ao da realidade quotidiana.
Vinte anos depois, na sua casa, voltei a ficar ao lado dela à espera que adormecesse e recuperasse a energia que a faz voar tão bem. Imóvel, com os sons da cidade esquecidos, escutei durante muito tempo os mesmos sinais. 

quarta-feira, julho 19

Café Capri

Paulo, Mendes, Júlio Brás, Luis, Cardoso, Zé Luis
Eu, Barroso, Manel Capri, Tó, Júlio

Gosto muito desta fotografia. É de pequena dimensão, doze por oito, e de uma definição surpreendente. Quarenta anos depois e os vários tons de cinzento ainda se mantêm. O Café Capri com o equipamento alternativo do Vidago Futebol Clube.
O Capri era muito mais do que um café. Três espaços bem definidos: o espaço central de muito bom gosto com uma estética dos anos sessenta; uma sala adjacente virada para o quintal da Dona Anita, ocupada por um bilhar livre, que lhe dava um tom diferenciador; e à frente, contígua à estrada nacional 2, a esplanada. E era a esplanada que pelas noites longas e abafadas de verão tornava O Capri tão agradável. Um lugar de permanência quotidiana, um lugar de passagem, um lugar de reencontros anuais. Era um local aberto e cosmopolita que espelhava o temperamento dos proprietários: da Dona Cilinha recordo a enorme tolerância de professora e a sua energia inesgotável, do Sr. Manuel, Manel Capri, a juventude permanente, a imaginação sem freio e a vontade de fazer. Mas o traço que melhor os caracterizava era o de gostarem de pessoas. E foi neste ambiente que saiu esta equipa feita em cima do joelho para uma única partida para confraternizar não sei o quê.
Tenho-a de novo à frente. Uma vez mais, percorro cada rosto um a um: reparem no Mendes (Jorge) de braços cruzados e olhar altivo, o primeiro defesa central moderno que vi. O tempo no jogo sobrava-lhe tal a clarividência que imprimia. Quem jogasse à sua frente rapidamente percebia que a bola sairia domesticada do seu brilhante jogo de cabeça. Também o Júlio Brás estava habituado a competir, nota-se na segurança com que nos olha. Era um exímio jogador de golfe, várias vezes campeão do clube. Arrastava atrás de si, em matchplays históricos contra jogadores de outros clubes, dezenas de pessoas pelo relvado do Campo de Golfe de Vidago. Metódico, persistente, com uma técnica apuradíssima, usava os mesmos princípios na sua função de ponta de lança – eficácia com o menor esforço. O Zé Luis e o Mário Barroso também eram handicaps baixos. Não me lembro de jogarem futebol, mas recordo claramente a tenacidade, a voz clara e assertiva do primeiro e a enorme gentileza do Barroso. Eu e o meu grande amigo Tó éramos os mais novos deste grupo. O Tó jogou a defesa direito tanto neste jogo como nos juniores do Vidago. Nunca foi outra coisa senão isso – direito, direto, justo. Ao lado dele, o Júlio. O Júlio, vejam bem, tinha uma Honda CB 200 vermelha naquele tempo de motorizadas. Tal como a mota, toda a sua anatomia estava preparada para a velocidade e para os recordes. Corria, saltava, lançava como ninguém. «Júlio, porque não vais ao Sporting?» Sorria com uma indiferença juvenil, como se o tempo não corresse também. Quanto ao guarda-redes, era óbvia a escolha: a baliza só podia estar ocupada por quem tinha estampa e, de todos os que frequentavam o Café Capri, o Paulo Veiga era o único que preenchia todos os requisitos: altura, voluntarismo e uma confiança transbordante. O meu irmão jogou à bola desde miúdo e jogava muito bem, mas dá-me ideia que sempre preferiu a autenticidade dos grandes jogos que só a infância permite. E, por fim, o Mário Cardoso. Tenho a certeza de que quem subia a ermida até ao pelado João Oliveira ia para ver a performance do Mário Cardoso. Valdano, jogador argentino do Real Madrid e em tempos colunista do El País, disse que o «futebol é engano: aparenta uma coisa para acabar fazendo outra». O Mário era o futebol. Criava futebol. Reparem na ansiedade que lhe trespassa o rosto como um ator antes de entrar em cena. Com o Mário em palco os adeptos vidaguenses, para lá de aplaudir e gritar, faziam uma coisa nunca vista: riam à gargalhada solta! O futebol do Cardoso era assim mesmo: teatral, tecnicamente perfeito, absolutamente desconcertante. 
Ficava-nos bem o preto do Café Capri

segunda-feira, abril 10

Largo do Olmo

O Luis, meu irmão, disse-me que só notara que Vidago tinha muitas árvores quando partiu para terras do sul. Acontece com frequência sentirmos falta das coisas, mas de árvores? Há, evidentemente, árvores por aqui, enormes, centenárias, mas não na dimensão, densidade e diversidade de Vidago. Sintra, onde se refugia para fotografar, talvez ultrapasse Vidago na mancha arbórea. A Câmara de Sintra e diversos grupos de defesa do património sabem muito bem o tesouro que têm. Mais do que usufruírem de uma natureza preservada e diversificada, vendem-na. Confessa, sempre que se fala do assunto, a mágoa ao ter constatado a destruição dos carvalhos que ligavam umbilicalmente Vidago ao Parque do Palace. Cortaram o que unia dois universos tão distintos a troco da ideia de “requalificar a avenida”, como se fosse possível requalificar cortando cerce e sem critério o que é impossível substituir de uma só vez – árvores adultas. Não sei quem impingiu esta ideia, mas tenho a certeza que não se lembraria de tal quem nasceu por lá. 
Também eu fui educado pela terra. Na rua, claro, como era comum naquele tempo. E em Vidago a nossa rua era, para nossa felicidade, muito mais do que isso: um espaço infinito e um mundo de aventuras marcado sobretudo pelos parques, pelo campo de golfe e pelas avenidas cobertas de sombra. Desde muito novos aprendemos a identificar as árvores e a chamá-las pelos nomes, como se faz com as pessoas.
Começo, deixando a memória vaguear pelos finais dos anos sessenta, por onde só podia começar: pelo centro mais antigo da vila – o Largo do Olmo. Há melhor mote? Dar o nome de uma árvore ao núcleo da pequena Vila. O olmo desapareceu, como quase todos os olmos na europa, mas a vontade em centrar o futuro à volta das árvores manteve-se. Apesar das tentativas vãs em repor a espécie, acabaram, anos mais tarde, por substituí-lo por um carvalho-americano. Bela alternativa. Recordo-me, a propósito dos olmos, muito comuns na altura, o esforço do meu pai e amigos frequentadores do Café Capri em combater o fungo para salvar um velho e frondoso olmo à frente do café. E quem não se lembra também do gigantesco eucalipto à frente do Grande Hotel a fazer lembrar o zimbório de uma catedral; ou do belo acer da meia-laranja que continua a equilibrar o espaço do elegante posto de turismo; quem se esquece das três acácias da farmácia; do buxo que ultrapassava o muro alto do quintal do Sr. Costa; dos contrastes lustrosos em pleno inverno das japoneiras escondidas pelos muros do Dr. Canavarro; ou das amoreiras à frente da escola do Professor Fraga que tingiam de açúcar a sua sombra e anunciavam o final do ano escolar; ou dos enormes plátanos, olmos, pinheiros que acompanhavam a estrada nacional até ao apeadeiro Salus, até Oura, até Loivos e até ao fim de tudo; e a magnífica cobertura ogivada de plátanos da avenida que ligava a Estação de Caminho-de-ferro ao Palace, muito antes das soluções do arquiteto Santiago Calatrava para a gare do oriente em Lisboa; ou do biombo de árvores pujante que aconchegava e dignificava a ruína do Hotel do Golfe; e os amieiros, freixos e salgueiros que apertavam e davam vida ao rio oura; e os carvalhos americanos que se generalizaram por toda a vila e tudo uniam. (Como ficava bem na heráldica de Vidago um simples carvalho-americano) E depois o campo de golfe, meu deus! O relvado, as mil e uma espécies – do vulgar pinheiro à invulgar sequoia, dos choupos às magnólias, das cuprésseas às tílias - e a paleta de cores que proporcionam e marcam a passagem do tempo.
Não sei de quem é a ideia, mas faço-a também minha de tanto a usar: O ser vivo mais antigo de uma cidade que se preze deve sempre ser uma árvore. A longevidade, beleza e estado dessa árvore diz-nos quase tudo sobre essa cidade.”

domingo, março 5

O meu tio Zeca

Nada sabia do meu tio Zeca. Nada sei.
Semana sim semana não, percorríamos 48 quilómetros para visitar a família na aldeia de Constantim. O meu pai nasceu lá, mas toda a sua infância e juventude passara-as por terras da raia à volta das saias da maestra Felisbela, minha avó. Por morte prematura de um pai de outras terras, ficou exclusivo da família materna, gente abastada - os Faceiras, e da aldeia que o mimou e tratou por Luizinho. Já a minha mãe era a filha mais nova de uma família da terra que partiu para o Brasil à procura de fortuna. Quando regressaram do Rio de Janeiro, logo após o nascimento de minha mãe, trocaram os dinheiros poupados por casas e pelas melhores terras da aldeia. Eram cinco os filhos: a Justina, a mais velha e por quem a minha mãe tinha uma adoração especial, o João, dono da venda e do café da terra, o Toninho, com táxi em Vila Real, o Zeca e a Lurdes, minha mãe, a mais bela e formosa da terra, nascida em tempos de abundância familiar. Todos eles casaram. Todos eles tiveram muitos filhos, o ti Zeca não.
As tardes de domingo eram passadas  na casa e na venda do meu tio João. Homem discreto e afável. A azáfama da venda e do café, o ritmo das primas que subiam e desciam com tarefas bem definidas e a atenção afetuosa que nos dedicavam tornavam estas tardes diferentes. Toda a aldeia rodava à volta da venda do meu tio, que prestava todos os serviços. Aos domingos, os homens ocupavam literalmente parte da estrada nacional à frente do café e por lá gozavam a única tarde de ócio de que dispunham. Foi nesse percurso, já rapaz e acompanhando minha mãe, que nos cruzámos com o tio Zeca. Abraço caloroso e familiar entre os dois e hesitação e estupefação minha perante o desconhecido. Cumprimentei-o perplexo e, enquanto conversavam, reparei nas feições familiares daquele rosto. Um rosto que não me era completamente estranho. Desde aí, vi-o algumas vezes mais. Sempre discreto, camuflado pelos homens da terra no café do seu irmão João. Por vezes, apanhava-o a perscrutar-nos com um olhar de quem procura pormenores do seu desenho genético nos rostos dos filhos da sua irmã Lurdes; mais de uma vez, vi-o a pedir a bênção ao pai, David, meu avô; uma ou outra vez, a cumprir o ritual na igreja onde era sacristão, diluído na exuberante talha dourada do altar, absorto de tudo o resto e sempre com o mesmo semblante. Encontrei-o também numa fotografia em casa do meu avô que tantas vezes vira e que não me despertara a mínima curiosidade. E lá estava o ti Zeca ainda menino, vestido como um adulto, quase imperceptível, apagado  pelos irmãos mais velhos e pela frescura das irmãs. Como conseguia este dom da invisibilidade? Quem era este homem tímido que ouvia muito e falava tão pouco, que no meio da gente da terra se mostrava longe das conversas, que demonstrava uma serenidade e uma bonomia constantes e que aparentava dar-se bem com a solidão?
A minha mãe dizia que era uma jóia de rapaz e que sempre fora assim - metido em si, ensimesmado. E era este ser assim que o afastava dos outros. Herdou o seu quinhão na altura das partilhas e com ele governara-se. O seu universo era a mulher, os campos, a igreja. Bastavam-lhe.Talvez tenha escolhido a obediência, o silêncio e a humildade e se tenha afastado deliberadamente dos prazeres mundanos. Este afastamento da família alargada resguardavam-no evidentemente das tensões e das questiúnculas naturais de quem está próximo, dos favores, da obrigatoriedade da retribuição, da formalidade da boa educação. Mas também o afastava da cumplicidade, do carinho e do sentimento de pertença.
Talvez fosse deliberada a sua escolha de uma liberdade mais plena. Talvez, pelo seu feitio, tivesse sido empurrado naturalmente para ela. Provavelmente, esta maneira de ser livre é, quase sempre, estar só.

quarta-feira, março 4

Felisbela, minha avó

Luis Barreira

De há um tempo para cá o meu irmão vasculha o passado. Mexe em gavetas, revolve baús, limpa o pó de álbuns fotográficos. Se bem o conheço, não procura recordações revivalistas, tão pouco se esconde, nesse emaranhado de coisas, de um presente complexo. Procura sim, como todos os artistas, tropeçar no que há de eterno nas suas memórias - no belo. Sempre achou que a beleza salvaria o mundo.
Enviou-me duas fotografias da avó Felisbela. Penso cada vez menos nela, apesar de no meu quarto ter uma fotografia em que ela, ainda jovem, ocupa o centro da família. De tão próximas, as fotografias que temos nas paredes das nossas casas acabam por diluir-se. Com esta não será assim.
Numa das fotografias que me enviou, a minha avó posa para o neto mais velho, meu irmão, sentada na ponta de um dos cadeirões da sala de jantar. Ereta, blusa de seda branca com triângulos pretos, olhar direto no primeiro terço da folha, perfil parcial, sorriso forçado, cabelo cuidado, mão esquerda em cima do joelho - o modelo, a professora Felisbela, seguindo as indicações do cânone do retrato clássico. Não fosse a minha avó ali naquele ambiente familiar e os meus olhos nada reteriam.
Mas a primeira que me enviou, esta que vos mostro, tenho a certeza que o comoveu tanto quanto me comoveu a mim. Senti uma saudade imensa. Fez -me lembrar o autorretrato de Rembrandt, de 1669, ano da sua morte. O mesmo rosto cansado, a serenidade estampada no olhar, a luz perfeita de tons suaves do final de tarde, o claro-escuro meigo reflexo da sua maneira de ser, a mesma dignidade, o olhar introspetivo que me emociona.

quarta-feira, junho 18

Um longo passeio pelos greens (4)


O som dos spikes metálicos dos sapatos no granito das escadas íngremes do Pavilhão marcava a inquietude e a ansiedade de um tee time cada vez mais próximo. Mas tudo começara no dia anterior. Na limpeza meticulosa dos ferros Wilson que a prima da américa oferecera, na escolha da bola ainda embrulhada em celofane e reservada para a ocasião, na verificação da quantidade e do tamanho dos tees, no esticar e dobrar da luva encarquilhada, no toque no quarto de dólar americano que marcaria a bola nos greens. O polo azul Fred Perry e as calças de cor clara, já vincados pela mãe para lá das recomendações, e o brilho puxado nos sapatos fechavam, com o grau de discrição que a timidez exigia, mas também com o cuidado subtil de não passar despercebida, uma composição elegante.
E depois a noite longa, demasiado longa, de olhos apertados, a volta delineada nas voltas da cama, pancada a pancada, de uma regularidade e perfeição impossíveis, e o tempo que nunca mais passava, irrequieto e enervante, que o atirava para o relógio vezes sem conta. E quando o cansaço parecia vencer, a manhã precipitava-se. O alvoroço perturbava o silêncio de domingo e a surpresa disfarçada da mãe recordava-lhe as horas que ainda faltavam para o torneio, “Não é só à tarde?” Sim, era.
O Pavilhão, não sei porque lhe chamávamos assim, era uma antiga fonte de águas termais adaptada a clubhouse do campo de Golfe de Vidago. Entre o pavilhão e o tee do buraco 1 passava a avenida que ligava a fonte termal nº2 à fonte Salus, na extremidade do parque. Esta longa e longilínea avenida, apertada por plátanos, de saibro meticulosamente varrido, limitava, à direita, todo o percurso do primeiro buraco e servia de verdadeiro teste aos nervos de qualquer jogador. Mas era no perímetro do primeiro tee, em frente ao Pavilhão, que o espetáculo decorria. Tarde de domingo, bancos de madeira vermelhos vivos reservados desde cedo pela gente da terra que por ali ficava. Conhecedora dos meandros deste jogo elitista contrastava com a perplexidade dos aquistas que por ali passavam e que, surpreendidos pela estranha coreografia no relvado imaculado, paravam por breves momentos. A azáfama de jogadores e as correrias dos caddies até ao parque de estacionamento na disputa dos golfistas mais generosos rematavam o ambiente de festa. O afã que precedia as saídas das diversas formações de jogadores repetia-se, e o burburinho só diminuía pelo avançar do jogador chamado pela voz do starter e pelos primeiros movimentos de ensaio que precediam a posição definitiva.
Mas quando a nossa vez se aproxima já pouco se ouve e pouco se vê. A barriga aperta ainda mais, o tempo escoa-se. Quando avançamos para as marcas de saída, aqueles dez ou onze passos, aparentemente resolutos, deixam-nos sós num palco verde constrangedor. E então, orquestrados pelo código de um jogo que exige silêncio quando alguém se posiciona, toda aquela gente para e todos se centram em nós. É sempre nesta altura que alguém tosse, alguém se aproxima ainda, alguém diz uma palavra mais, alguém continua a andar no saibro da avenida para a fonte, e é nesse momento que a voz se faz ouvir de novo sobre as outras distraídas e exige que tudo pare. E é essa voz que perturba ainda mais, e todos param e sabemos que todos, sem exceção, se viraram para nós e esperam. E é nessa altura que se ouve o bater do coração e queremos sair dali. E tudo se precipita de uma forma mecânica: bola em cima do tee, três ou quatro passos atrás, movimentos de alongamento do corpo com swings ritmados num crescendo de vigor, memorização de um ponto para o alinhamento, regresso à posição definitiva, aproximação do ferro 2, ligeira correção da altura da bola, verificação da posição dos pés e mãos, olhar rápido para o objectivo, rosto apertado, olhos fixos na bola. O movimento de backswing, que devia ser mais lento e amplo, acelera para lá das rotinas que o treino parecia ter consolidado e desmorona a elegância necessária ao movimento. A correção instintiva do movimento transforma o final do voo da bola, vergonhosamente curta para um adolescente, numa curva para a direita roçando os plátanos da avenida. O embaraço espelha-se imediatamente no rosto após o som da pancada e alastra à gente mais velha da terra que não precisa de se levantar.
Mas é de lá que vem o toque no ombro ou a frase reconfortante, “Força, Ni!”.

sábado, maio 24

Um longo passeio pelos greens (3)


Durante duas semanas, numa pequena vila transmontana, o “golf”, esse desporto tão elitista e desconhecido para o comum cidadão português, relegava o futebol de Eusébio e Yazalde para um plano secundário. Em Setembro, os Torneios de Golf de Vidago representavam o culminar de uma preparação que se tinha iniciado aos primeiros dias primaveris. Eram quinze dias ininterruptos de golfe, num campo meticulosamente preparado e que aos primeiros sinais de Outono se transformava num local encantatório. Quinze dias de confronto com adversários vindos de longe. Quinze dias de ajuste e nivelamento sociais. Quinze dias que transformavam a pequena vila num pequeno mundo cosmopolita, de etiqueta, de silêncios, de exclamações. Quinze dias em que as conversas no Café se enchiam de anglicismos, de números, de decepções, de espantos, de regozijos, de promessas. Quinze dias que se esgotavam rapidamente e atiravam abruptamente o golfe para uma letargia potenciadora.

segunda-feira, abril 21

Um longo passeio pelos greens (2)




Mas é com o campo que o verdadeiro desafio se faz, qualquer jogador de golfe sabe isso.
Experimentem jogar em Vidago, no outono - a verdadeira essência da natureza, de uma natureza que se apresenta como emanação de um deus. Mas não se deixem iludir: toda aquela beleza, aparentemente espontânea, não passa de um logro. Por debaixo de toda aquela harmonia está o dedo perverso de um deus qualquer medieval - exigente, inclemente, quase sempre devastador, raras vezes acolhedor. Quem o desenhou fê-lo para nos seduzir e depois, creio cada vez mais, para nos corromper e para nos vexar.

Coloquemo-nos de um ponto de vista exterior, nos olhos do criador. Desçamos o monte íngreme de terra pobre e agreste, feito de fragas e penedos de granito, coberto de giesta, urze, rosmaninho, estevas, tojos, pinheiros, carrascos e cedros, e quando o monte descansa a paleta de cores altera-se radicalmente, incendeia-se: os verdes sem estação da montanha dão lugar a um vale de paleta rica em tons flamejantes açucarados.    E a escala de tudo aquilo! Se quisermos registar na nossa memória todo esplendor de cor, de texturas e luz, a altura e robustez dos plátanos e dos cedros, os áceres, os belíssimos tons amarelos dos castanheiros-da-índia, os amarelos, laranjas, vermelhos e castanhos dos frondosos carvalhos-americanos, os bordos nas terras ricas com o seu luminoso amarelo-ouro com notas avermelhadas, os longilíneos e trémulos choupos-negros com o seu amarelo-ocre, os freixos, amieiros e salgueiros que ladeiam o ribeiro que percorre todo o vale, a perfeição das tílias, a desmesura da sequoia-vermelha - que viverá por mil anos, o chão juncado de folhas que apertam o relvado, reduziremos o homem a uma infinita e insignificante pequenez.
E como se tudo isso não bastasse, o que nos toca mais no meio daquilo tudo é o silêncio. O silêncio absoluto. E a dimensão do absoluto mede-se paradoxalmente pela nitidez dos trinados dos rouxinóis, pelo canto limpo e repetido dos tordos, pelo restolhar dos melros nas folhas secas. E é esse silêncio que nos comove, e é esse silêncio que nos coloca num lugar indeterminado, num vazio inquietante difícil de detalhar e de compreender.

Perante esta explosão simultânea de violência e de tranquilidade, o que fazem os jogadores de golfe?
Cegos, perseguem uma bola.

sexta-feira, abril 11

Um longo passeio pelos greens (1)



Dificilmente me seguirão. Ninguém suporta conversas sobre golfe e golfistas. Como se isso não bastasse, vou usar termos específicos da modalidade que, provavelmente, nada vos dirão. Mas também não dizem muito. Quando o itálico enviesar a palavra não liguem e pensem que tudo se resume a se bateu ou não bateu na bola. Passem à frente. Evitarei juntar aos anglicismos os palavrões que os precedem ou que lhes sucedem. São estes que classificam com acuidade a qualidade da pancada. Não há só dois tipos de pancadas, tal como sugeri, mas uma infinidade delas e, por estranho que vos pareça, as perfeitas são raras, dificilmente as vemos. Melhor, ouvimos, porque o som do contacto com a bola é o primeiro sinal, e o mais fiável, para atestar a qualidade do bom shot. O som não engana. O contacto perfeito provoca no jogador uma sensação única de plenitude e no adversário a exclamação genuína de reconhecimento ou, por vezes, o elogio forçado, a dissimulação, o silêncio invejoso. Estranha estas palavras quem pensa que o golf (repararam no itálico e a perda do é) é um desporto cortês de uma elite aristocrática de sapatos de franja brancos e calças aos quadrados seguidos por rapazinhos enfezados que carregam sacos enormes cheios de ferros de todos os feitios e incapaz de tais sentimentos mesquinhos. Afastem essa ideia. Esse mundo, se existiu, acabou há muito. A roupa e os acessórios exclusivos foram substituídos pelas plebeias nike e adidas que tornaram o golfe num circo de cores que só tem paralelo no jogging de domingo à beira-mar; pensam, ainda assim, que os grupos de afortunados que se passeiam nos greens a falar de negócios e a matar o tempo que lhes sobra são alheios à competição; acham, seguramente, que não encontram ao longo das quatro horas do percurso um gesto que os comprometa, uma palavra que os vulgarize, uma atitude que os denuncie. Nada disso, simples mortais. Batem-se tenazmente. São capazes de tudo: das desculpas mais torpes, dos palavrões mais rascas, dos olhares mais inquisitivos, das atitudes mais vis. Se lerem as regras que regulam este longevo desporto e a minúcia das situações que prevê, percebem que a tentação para contornar as normas está latente neste jogo do demo. Fazem tudo por um bom cartão.
Mas há os que o interpretam como um jogo para Homens. Impolutos. Um jogo de deuses. Uma luta inglória e sem fim contra nós próprios e contra o campo. E aí não há lugar para a trapaça. Só há lugar para a desilusão, para o silêncio, para o abanar de cabeça, para o palavrão surdo. E também para a catarse.
Claro que não há os bons e os vilãos. Uns e outros. Os jogadores são uns e outros. Mas todos têm duas características em comum, não estranhem: a perseverança e a humildade – conservam-se firmes, não desistem e são, também, os primeiros a reconhecerem as suas limitações, os seus defeitos, as suas incapacidades. E isso é, bem sabem, difícil de aceitar e, sobretudo, admitir perante os outros - e é aqui que surge o embuste, a simulação, a vaidade.

segunda-feira, março 17

“Twinkling star”






Já todos sentimos aquele súbito tremor na vista e o frémito que percorre a espinha, aquele desconforto, aquela agitação interior perante o inesperado, perante o belo. Ou, como neste caso, perante o feio.

Apareceu de vestido de cetim branco, rodado, pelo joelho. A pele clara das costas, os ombros e os braços nus ganhavam um protagonismo inusitado. Preso do pescoço até a uma cintura subida, um emaranhado de pregas, franzidos e acessórios dourados diluíam por completo uns seios firmes e um corpo helénico. O trabalho com os cabelos foi devastador. O cabelo liso deu lugar a um elaborado e confrangedor penteado de madeixas e caracóis. Os brincos, arrecadas da avó de filigrana fina, baloiçavam incessantemente. E não soube parar, os olhos retocados a tons suaves e os lábios pintados desfiguraram irremediavelmente um rosto cândido. Para acentuar o desastre da composição, escolheu uns sapatos claros de salto alto a condizer.
Enquanto caminhava ao seu encontro, o jovem professor viu que Dalva transformara-se numa boneca espanhola desarticulada.
Viu-o desconcertar-se, pestanejar, entreabrir os lábios para não dizer nada. Ficou pálido.
«Vamos», balbuciou.
Emudeceu.

Os dias eram demasiado quentes e secos para os primeiros dias de junho. David passava pontualmente às seis e meia de regresso à casa alugada por um grupo de professores. Foi colocado a meio do ano letivo após ter terminado o serviço militar obrigatório. Alto, cabelo curto, de tez morena - reflexo da vida militar, David fora convidado a partilhar a casa com outros sete professores. A “casa dos professores”, uma verdadeira república nas palavras do padre da paróquia, era local de pouco sossego: saídas pela noite dentro, folias e folguedos a desoras, jantares prolongados no terraço com os muitos amigos que por lá pernoitavam. Não demorou muito tempo para que a casa fosse vista, na perspetiva dos olhares das viúvas da aldeia, como um local pouco recomendável pela suposta promiscuidade que por lá reinava e à qual o padre fizera na missa de domingo, embora velada, uma referência depreciativa às mulheres que a habitavam.

 Às seis e meia, o carro percorria os metros finais de uma estrada que acabava naquela terra isolada do Douro – Pedregal. Apesar do rio a escassa distância, aquelas terras não beneficiavam das vantagens da zona demarcada do vinho do porto. Terra pobre em concelho pobre. Devastada pela emigração que lhe levara os homens, Pedregal era terra de amazonas. Mulheres robustas, precocemente gastas, touca e avental, saias largas pelos joelhos, pernas nuas, braços fortes e tisnados, carregavam, ao final da tarde, cestos, produtos da terra, enxadas, filhos pequenos, trouxas dos filhos e da casa, e animais.
Dalva era a mais nova dos cinco filhos da proprietária da venda da aldeia. Ficara ela. Quatro anos antes, trocara com agrado os estudos para cuidar da doença da mãe e do pequeno negócio. Com os seus 20 anos, os dias eram demasiado longos para ela. Dormia até tarde, substituía a mãe na hora da preparação do almoço, aviava as velhas viúvas da aldeia, recebia o correio, lia as cartas de França ou da Alemanha, cumprimentava o velho padre da igreja em frente, que não evitava em olhá-la demoradamente alertando-a, com o sotaque arrastado e cantado do Porto, para os perigos de tanta beleza, «Dalbinha! Dalbinha!». Pela tarde, como em todas as tardes, sentava-se no banco de pedra à porta da loja a respirar, entediada. Entrava ocasionalmente para atender o telefone, chamar um carro de praça de Santa Marinha, despachar um cliente esporádico, e voltava para o banco à sombra da roseira retorcida de pequenas rosas escarlate. Conversava com os velhos da aldeia que por ali ficavam, simplificava na roupa, descuidava-se na postura naquelas tardes quentes. Não nos olhares para o professor que passava religiosamente àquela hora.
 Quando o motor do Fiat se fazia ouvir, já Dalva tinha alongado o corpo, prendera melhor o cabelo, colocara-se na posição mais favorável. E eram tantas, Dalva, filha de Júpiter. No momento fugaz em que cruzavam os olhares, Dalva esboçava, sem se descompor, um ligeiro sorriso atrevido. E era aquela postura de felino e aquela simplicidade que a tornavam, aos olhos de David, surpreendente bela. Como o comovia aquele toque de aparente negligência. As t-shirts e as calças de ganga que usava habitualmente desenhavam-lhe um corpo magnífico. E ela sabia-o. O padrão não variava: fundo liso, riscas finas brancas horizontais adossadas a outras vermelhas ainda mais finas contornavam e realçavam os volumes de um busto perfeito e de uma cintura jovem. Os cabelos castanhos com laivos dourados apanhados atrás deixavam o rosto e, sobretudo, o sorriso brando superar a frieza da perfeição clássica.

O calor do fim do dia parecia ter atingido o pequeno carro pelas curvas da margem direita do Douro. Seguia em sentido contrário ao rio. Dalva mostrava-se entusiasmada com o convite para uma noite na discoteca com os amigos de David e tudo fez para que os monossílabos bruscos e o amuo dele se dissipassem. Tinha percebido desde o primeiro momento que algo o perturbara e, sem alterar a rotina dos meses anteriores, colocou, como colocava sempre, a mão na perna dele e esperou que a mão dele a tocasse, como tocava sempre. Deixou, como só as mulheres sabem, e sem que houvesse menor indício de vulgaridade naqueles descuidos, que o próprio percurso sinuoso do rio deixasse assomar o joelho redondo, a coxa lisa, que o vestido se descompusesse e deixasse, por momentos, que parte do seio direito se visse. A mão que sempre a tocara não escondia o mau estar nem o silêncio obstinado. Rodava impacientemente o botão do rádio, tirava e punha cassetes, rebobinava-as, guiava olhando a estrada de testa congestionada pela aversão. Não sabia como comportar-se, ou para onde ir, o que dizer. Não encontrava, no fundo, uma justificação para desistir da noite com os amigos. Podia ter-lhe pedido que tirasse o vestido branco de cetim e voltasse aos jeans e tshirt, mas a ideia de condicionar alguém estava fora das suas cogitações.
O mau humor não se dissipou ao jantar. Comeram pouco e quando David por breves momentos a olhou nos olhos, Dalva percebeu o pânico instalado no namorado. Não o inquiriu nem o condicionou. Falou do livro que andava a ler - porque lia noite dentro, dos livros que a despertaram para o hábito da leitura, de Eça de Queiroz, fez referências pormenorizadas aos lugares de A Cidade e as Serras, que tinha como cenário aquela zona. Pela primeira vez, Dalva falou mais do que ele. E fê-lo com graciosidade, sem aparente esforço, como diriam os italianos do quattrocento, com sprezzatura. David percebeu nessa altura que não só desconhecia o que Dalva lia, o que ouvia, do que mais gostava, mas também se tornou ainda mais claro de que ela o amava. Desde que o conhecera, passara a ser não só o porta-voz de um mundo novo como também o próprio mundo. Gostava de o observar, como se movia, como se comportava. Talvez fosse a melhor maneira de o conhecer. Mais, escutava-o. Mais, estava-lhe grata.
Mesmo resignado, a má disposição de David não se desvaneceu por completo e o resto do percurso foi marcado pelo entusiasmo moderado e pela ternura discreta de Dalva, que nunca provocaram nele qualquer tipo de constrangimento. Virou-se mais para si, para as músicas dela, e que eram também as dele: Louis Amstrong, Nat King Cole, em espanhol, uma descoberta para ela, e, sobretudo, as de Ella Fitzgerald que lhe pareceram as mais adequadas para retirar o companheiro do ambiente soturno em que se metera. Conhecia-as de cor. Suavemente, na penumbra que os envolvia, sobrepunha a sua voz à de Ella. Dedicated to you era canção preferida de David, e Dalva cantava-a baixinho, «If Ishould write a book for you/ … / That book would be like my heart and me/Dedicated to you» e tornava a sua voz imperceptível durante parte do tempo dando espaço à surdina do trompete, à orquestra, aos pensamentos, regressando para sublinhar, «If I should find a twinkling star/ One half so wondrous as you are/ That star would be like my heart and me /Dedicated to you», prolongando, para além da voz de Ella, o u em diminuendo.
Chegaram mais cedo que os amigos à discoteca e sempre que alguém entrava, o coração de David saltava. E tal como ele previa, aconteceu o que mais desejava e, também, o que mais temia: Luísa também viera.

Deixara-o há alguns meses. Mulher de mil encantos, mulher que moldou os seus gostos, mulher que ocupou obcecadamente todos os seus pensamentos. No dia em que a conheceu, não conseguiu dormir; quando soube do interesse dela em voltar a sair com ele, não acreditou; quando lhe deu o primeiro beijo, não soube se devia rir ou chorar. Portuense, aluna da faculdade de medicina, Luísa falava, ao contrário do que seria de esperar, de cinema e de teatro, recomendava o cinema fantástico do Fantasporto, referia, a miúdo, as propostas alternativas do FITEI (festival de teatro do Porto) e gostava, em particular, de livros, dos sul-americanos - tão em voga com o prémio nobel de Garcia Marquez. Mas era de poesia que falava com mais entusiasmo. Iniciou-o em Fernando Pessoa, nos heterónimos, mostrava preferência por Ricardo Reis, lia-lhe os modernistas portugueses. David sucumbiu não só à beleza de Luísa, mas também ao poder da palavra, ao entusiasmo, às escolhas que fazia, ao cosmopolitismo de Luísa. Quando terminou a relação, falta dizê-lo, fê-lo com a delicadeza que se esperava: transcreveu um poema de Mário de Sá Carneiro na página dedicatória do livro que lhe oferecera - «Um pouco mais de sol – eu era brasa / Um pouco mais de azul – eu era além / Para atingir faltou-me um golpe de asa …. Se ao menos eu permanecesse aquém …» e terminava com a ideia de que ao ler o livro David compreenderia melhor a decisão dela.
Um enigma que o havia de consumir.
Estava mais magra e, como muitas vezes acontece, tornara-se ainda mais bonita. Mantinha uma elegância fora do vulgar, um pouco francesa misturada com uma certa travessura italiana. O cabelo liso e negro pelos ombros, risca ao meio bem desenhada, pele morena, olhos de suave recorte oriental reflectiam requinte e sofisticação e, para além disso, o mistério das mulheres belas. E mulheres belas, especialmente se ainda são inteligentes, provocavam em David um tremendo sentimento de insegurança.
Quando viu David, o olhar de Luísa passou por brevíssimos instantes por ele para se fixar de imediato na companheira do lado, em Dalva, numa avaliação imediata, instintiva, precisa, para lá do cetim branco e das arrecadas de filigrana fina, para voltar de novo a David. O sorriso alargou-se, familiar, sedutor, de resgate. Luísa vira uma igual. Dalva, apesar de surpreendida, compreendeu de imediato tudo. David não foi capaz de fazer mais nada senão olhar para a universitária, enfeitiçado. Ficou embaraçado, terrivelmente embaraçado, e o muito que sentiu foi sobretudo expresso pelo pouco que disse.
Foi uma noite de silêncio, espaçada por risos nervosos e galanteios. David manteve-se próximo de Dalva, mas não se esquivou nem quis às conversas curtas e recorrentes de Luísa nem aos seus subtis sinais de afecto. O barulho obrigava-os a aproximarem os rostos para se ouvirem. Invocavam um passado recente, recordavam episódios entre os dois, não evitavam tocar-se. David absorvia cada gesto, cada sorriso, cada palavra, mesmo sem as perceber. O simples fluir do som que as palavras produziam, a intimidade da conversa, excitavam-no.
 Não conseguiu ocultar os sentimentos, que é, como alguém disse, o primeiro passo no sentido das maneiras civilizadas. É o risco que a pessoa corre quando se apaixona. Arrisca-se a perder a dignidade.
 Dalva, Dalva, filha de Júpiter.
Dalva, circunspecta, colocava a mão na perna dele num último esforço para o agarrar, e só a retirou, num gesto instintivo, quando Luísa fez referência a Aquellos ojos verdes de Nat King Col e em particular a Dedicated to you, de Ella Fitzgerald.
Dalva inclinou-se, e com uma tremura na voz embargada suplicou-lhe ao ouvido, «Vamos …?» - desviando o olhar, escondendo-o. Estava só. Sentia-se uma intrusa num ambiente adverso.
Num lampejo de lucidez, David percebeu o desconforto e o abandono da namorada.

Era tarde. Tudo estava em ordem: o carro verde seguia agora no mesmo sentido do rio. O Douro brilhava do lado esquerdo. O contorno dos ciprestes, esguios e nítidos, que pontuavam a paisagem duriense entrava pelo céu claro daquela noite sem ar. O silêncio só era perturbado pelas janelas abertas e pelo barulho de um motor apático.
Embora por diferentes razões, o silêncio entre eles exprimia tudo o que sentiam. Não foi pronunciada uma única palavra. Tiveram a inteligência de não falar. Não se pode prever as consequências que as palavras podem causar, os mal-entendidos, o efeito explosivo. De olhar quase cego, com o vento no rosto, David não conseguia esquecer as palavras que ouvira nem o beijo fresco de despedida no canto da boca. Luísa sabia que por esse último beijo seria sempre recordada. Como traduzir aquele beijo em palavras? Enquanto o silêncio perdurou, repetiu mentalmente, uma e outra vez, as conversas, misturando o que ouvira com o que tinham dito e com o que desejava ter dito. Atribuiu significados aos mais pequenos gestos, aos olhares, interrogou-se, especulou, procurou as palavras certas, reconstruiu diálogos, esboçou sorrisos. Tudo lhe parecia mais nítido.
Quando o carro se preparava para desviar do rio, a escassos quilómetros da aldeia, Dalva, num gesto de condescendente ternura, colocou, como colocava sempre, a mão na perna dele e a mão dele, num gesto espontâneo de contrição, tocou-a de imediato, como fazia sempre.

Do promontório via-se o rio ao fundo, apertado por montes e vinhedos. Há muitos no Douro, mas aquele fora o primeiro local que David escolhera para passar as tardes de ócio. Um pequeno desvio em terra, ladeado por olmos, castanheiros, giestas, escondia o carro, deixando-o suspenso com o rio aos pés. Era ali que passavam as tardes. Dalva sentia-se à vontade, aliviada, de brilho nos olhos. A mão que colocara na perna dele, já afagara a mão de David, já notara a excitação, já repousara lá. O Fiat 127 verde estava de frente para um rio largo, brilhante. Dalva retirou os brincos, soltou o cabelo, já descalçara os sapatos de salto. Passou para o banco de trás com a desenvoltura de quem o fizera de outras vezes. David seguiu-a. Sentou-se primeiro. E ela em cima. Virada para ele. O vestido de cetim branco rodado facilitou o contacto quente dos corpos. Inclinou a cabeça na direção do peito e permitiu que David retirasse, de um gesto só e como que por magia, as pregas, os folhos e os franzidos que escondiam os seios rijos. Na memória dele, toda a noite, a pouca luz e toda a beleza se imobilizaram nesse momento. O momento em que a imagem de Dalva superava os mestres barrocos e tornava-se numa obra-prima viva, sedutora, eloquente. A luz de um luar quase pleno contrastava um corpo firme de uma voluptuosidade estonteante. Os lábios dela, luxuriantes e ternos, redimiam-se de um silêncio atroz. Dalva oscilava entre a meiguice e o enliçamento animal. Esmagavam as bocas, mordiam-se, chupava-lhe as mamas túmidas, paravam para ganhar fôlego e era nestes instantes, presos pelo sexo, que se olhavam deslumbrados.
«Amo-te», sussurrou-lhe ao ouvido pela primeira vez. Dalva sorriu.

David sabe, hoje, que a bela Dalva – a bela Afrodite, pertencia ao grupo de mulheres que, a começar pelo corpo e a acabar na alma, se tornaria a mulher perfeita. A verdade, no entanto, é que se tornara evidente que apesar de todos os seus encantos – a sua ternura, a sua beleza, o seu riso fácil – David nunca poderia amá-la. David tinha um enigma que o consumia.



quinta-feira, abril 25

Quando o aristocrático e decrépito Palace Hotel se encheu de pobres



 O João e o Di eram pretos. Conhecíamos outros em Vidago, mas, verdadeiramente, os sobrinhos do padre da paróquia nunca os considerámos como tal. Eram tão ou mais brancos quanto todos nós. Cresceram connosco. Não contavam.
De um dia para o outro, a descolonização encheu os hotéis termais de pretos, mesmo que alguns fossem brancos de pele pigmentada pelo calor das colónias. Mais do que pretos ou brancos, eram pobres. Mais do que pobres era gente sem nada, desgraçada. Via-se no olhar, nas mãos, na postura. 
 O aristocrático e decrépito Palace Hotel lotou com centenas de retornados sem família na metrópole. Famílias inteiras num quarto. Despejadas. Talvez tivessem ficado deslumbradas com a escadaria e aposentos do hotel real, mas não esperavam por um inverno daquela dimensão. Geada atrás de geada. Brancas. Cortantes. Corpos magros colavam-se às paredes dos cafés da vila, encolhidos, de frente para um sol incapaz de compensar a leveza das roupas coloridas. Desconheciam as lãs, as samarras, as botas. Quando as adquiriram, não conseguiram esconder nem o frio nem o desconforto nem o completo abandono.
Habituados à burguesia portuense que ocupava os hotéis nos três meses de verão, a pequena vila transmontana estranhou os novos habitantes. Preocupou-se com as consequências da ocupação. Lamentou. Ajudou no que pode. Alguns lucraram, porque há sempre quem lucre com a desgraça alheia. Também eu fui beneficiado.
O Sr. Arlindo, homem dedicado à terra e ao futebol juvenil, descobriu na miudagem recém-chegada o João e o Di. Tinham, evidentemente, a nossa idade, sabiam jogar à bola e, sobretudo, estampa de jogadores. O João era possante e de pontapé forte. O Di, de perna arqueada, hábil e rápido - um extremo à moda antiga. Nunca uma equipa do Vidago F. C. ficara tão perfeita: tínhamos dois pretos, tal como o Sporting e o Benfica. Se alguém guardou a fotografia dessa equipa reparou na harmonia da composição, no branco e preto do equipamento e dos rostos, sorrisos rasgados, dentes magníficos dos dois angolanos.
E todos os domingos de manhã a alegria e os abraços estavam à distância ínfima de um golo ou, na falta dele, nada nos aproximou mais que partilhar a tristeza das derrotas. Coisas de pretos e de brancos.

domingo, janeiro 27

No meu tempo ...


Há um sentimento generalizado que se sente em todas as conversas de vivermos um tempo de uma inusitada violência, de uma perda de sensibilidade moral, de decadência dos códigos sociais e a viva impressão de que tudo se desmorona. Até os jovens fazem sistematicamente comparações com um tempo “paradisíaco” de que ouviram insistentemente falar. “No meu tempo…” é a expressão mais vulgar que inicia um guião com um final feliz.
Que tempo é este de que tanto falamos? Com que recordações sustentamos este passado?
Recordo Vidago nos finais dos anos sessenta: relembro os intermináveis jogos de futebol em que a primeira coisa que muitos dos meus amigos faziam era descalçarem os socos ou as botas e jogarmos, sem restrições, aquelas partidas magníficas, ou os jogos entre equipas rivais da distrital marcados pelas bengaladas ao ritmo dos golos e do copo do tinto, salpicados pelos gritos histéricos das mulheres; ao meu pai, ouvi contar os finais trágicos das “Chegas de bois barrosãs”, ou os terríveis ajustes de contas por “questões de água”; recordo, também, a alegria e o reconhecimento com que, por altura do Natal, os empregados da Empresa das Águas falavam do peixinho de bacalhau dado pelos patrões e também dos protestos de alguns amigos pelos inúmeros cântaros de água que tinham que carregar para as necessidades da casa; vem-me à memória os penosos regressos a casa daqueles, e eram muitos, que diariamente acabavam o dia na taberna da Tia Florinda e desafiavam a brancura cortante das geadas transmontanas; no verão, o ribeiro era a felicidade de todos, porque a piscina do hotel estava reservada aos que podiam ficar em dívida com a Menina Alicinha, a quem tiravam o chapéu respeitosamente - “respeito”, que se confundia quase sempre com submissão; com grande saudade, recordo o Parque de Vidago com os milhares de árvores que conhecíamos tão bem - o nosso mundo de aventuras; “Mundo de Aventuras” era, também, a nossa revista de quadradinhos que se desfazia de mão em mão e me punha lado a lado com os meus heróis – o Major Alvega, o Ene 3 e o rapidíssimo Kit Karson; recordo, ainda, com um “estranho” sorriso, as monstruosas contas de dividir que tornavam a escola num inferno, e, como poderia esquecer, o Ilídio que resistiu heroicamente a trinta e cinco reguadas pelos trinta e cinco erros, sem verter uma lágrima!
Eram tempos muito difíceis e todas as estatísticas sócio-económicas o confirmam.
Seriam tempos mais humanos?, mais justos?, mais solidários? Penso que não. Penso que o nosso passado é uma imagem filtrada pelos olhos da criança que fomos. Provavelmente apontamos o futuro com um passado reconstruído à imagem dos nossos sonhos. Há uma frase de Maurice Merleau-Ponty que diz: ”Nunca me recomporei da minha incomparável infância”. Comigo é um pouco o mesmo.


terça-feira, dezembro 25

Um branco de inverno


Os tempos são outros, é certo. A loiça pode ser da Vista Alegre, os talheres de cutelaria de renome, os cristais de tamanhos e volumes adequados, a toalha barroca, os guardanapos enormes e contrastantes, algumas iguarias de latitudes diferentes. Mas a tradição da mesa transmontana dita que o cabrito assado no forno seja o alvo de todas as atenções. Assim foi. As expressões dos rostos faziam adivinhar facilmente as palavras que justificariam detalhadamente o acerto da confecção - o tempo da assadura, a consistência das diferentes partes, a proporção dos temperos, a espessura e cor do molho, a qualidade das batatas que acompanhavam o assado.
A escolha do vinho mereceu também uma atenção particular, e um atrevimento - quem escolheria um branco para acompanhar o almoço de Natal?
Resposta: o Senhor Luís Barreira, meu pai. O gosto pelos brancos vem de longe e o interesse pelos da Adega de Vila Real também, não fosse ele um transmontano e um apreciador de vinho. Se os brancos estão associados aos peixes e ao verão pela frescura e baixo teor alcoólico, sempre estranhei este gosto desalinhado (que contaminou o meu) e pouco ortodoxo do meu pai. A escolha mostrou-se acertada. O “branco de inverno” de Vila Real, Grande Reserva, 2010, correu livremente.

segunda-feira, dezembro 24

Bacalhau cozido com batatas do barroso



Recordo-me que o dia de consoada era longo, muito longo. O repasto, excepcionalmente mais tarde, começava com o depenicar de uns macios bolos de bacalhau. Depois, entravam fumegantes postas de bacalhau cozido com batatas farinhentas do barroso e couve troncha passada pelo azeite e alho, que eram substituídas pela pequenada pelo polvo, também ele cozido. No fim, os doces – rabanadas de leite e água, jirimuns lambidos em suave calda de açúcar perfumada com pau de canela, línguas de abade, leite-creme bem marcado pelo ferro, pratos de aletria decorados com a mestria da minha mãe - enchiam de novo uma mesa ainda composta.

quinta-feira, dezembro 6

Naquela noite de Verão





A chegada da família do Sr. Mário Rodrigues dava início ao melhor período das férias grandes. O Tó Mário era o mais velho de seis irmãos. Tinham seis bicicletas de todos os tamanhos. Uma delas, a verde, era de rapariga, da Joana, nem por isso menos pretendida, tal como as bicicletas dos irmãos mais novos que eram literalmente confiscadas. Todas elas serviam para imprimirmos outra velocidade àquela terra feita para miúdos. A do Tó Mário, não. A bicicleta do Tó Mário nunca se despiu dos guarda-lamas, da bolsa de ferramentas presa ao selim, tão pouco do suporte traseiro. Pudera, o Tó Mário precisava dele para transportar as inúmeras caixas cheias de fios, lâmpadas, tubos de ensaio, e todo o género de ferramentas. As mãos magras e os longos dedos do “engenhocas” pareciam esculpidas para aquilo. Era alto o Tó Mário, homem feito, costas curvas, branco como nenhum outro, olhos grandes encovados em olheiras arroxeadas. Naqueles estios infernais, refugiava-se nas suas experiências, ensimesmado, bem longe dos fedelhos.

Os fedelhos cresceram. O Tó Mário não mais andou na bicicleta de roda vinte e oito. Manteve a silhueta vincada, que traía a sua discrição, as camisas de risca fina de manga curta e o saco a tiracolo. Apesar de mais sociável, continuava reservado, falava baixo, cochichava projectos que a nenhum interessavam, repetia ladainhas sobre recentes amizades do Porto, dava conta de conversas tidas com o grupo de universitários sobre objetos voadores não identificados, tão frequentes nos céus daquele tempo. O aparecimento desses estranhos seres era conversa recorrente nos jornais, na televisão e também no Café Capri. O Tó Mário sentia-se à vontade na matéria, perdia a timidez, alimentava as conversas com pormenores, revelações, estudos científicos. O pormenor, claro, levava ao bocejo da rapaziada, mais interessada em carros, futebol e raparigas.

(Não devíamos ter feito aquilo. Estávamos longe de pensar nos transtornos que iríamos causar ao nosso amigo.)

Não sei de quem partiu a ideia, mas recordo com uma nitidez surpreendente o primeiro acto. Para dar credibilidade a toda a peça pedimos ao Mário Cardoso, empresário, casado, um pouco mais velho do que o grupo de rapazolas, que se referisse a um estranho fenómeno que lhe teria acontecido quando regressava a casa depois de um dia de trabalho. O Mário Cardoso era um brilhante “actor”. O campo de futebol era o seu palco predileto. Dono de uma fabulosa capacidade técnica a que juntava a teatralidade de um mimo, o Cardoso fazia gato-sapato dos adversários e, mais do que ganhar ou marcar golos, o que procurava era o aplauso. Imaginem Maradona e Conan O´Brien num só: era o Mário Cardoso.
Todos o conheciam, excepto o Tó  Mário. A descrição do estranho acontecimento de que tinha sido vítima na noite anterior incendiou aqueles olhos ávidos. Todos desdenhámos a ocorrência, dando coerência a conversas anteriores e ao plano improvisado. O Tó Mário, de olhar fixo, passou a único interlocutor: prolongou a conversa, procurou detalhes, pediu explicações. O Cardoso respondia de maneira evasiva, tinha lapsos de memória, divagava. Saiu da esplanada do Café Capri visivelmente transtornado, deixando para trás a informação de que haveria um novo contacto com aqueles seres dois dias depois, quinta-feira.
Tínhamos dois dias. A cada hora que passava o Tó  Mário aumentava a preocupação com o estado emocional do M. Cardoso e aumentava, também, exponencialmente, o entusiasmo com a revelação. A história alastrou a todo o Capri e os sorrisos e os avisos dos mais velhos não refrearam o comportamento obcecado do Tó  Mário.
O local do contacto estava definido. A preparação dos adereços e o esboço do guião ocupou-nos toda a tarde de quarta em casa do Paulo. O Paulo já na altura olhava o céu de outra maneira. Por vezes, em noites quentes e abafadas de agosto, como só as de Vidago são, escolhíamos o green do quatro e estatelados de barriga para as estrelas conversávamos noite dentro. Era nesse local de observação privilegiada que seguíamos o dedo do Paulo na identificação de vários pontos luminosos, de hipotéticas galáxias e, em vão, de perceber as distâncias absurdas a que tudo se encontrava. A possibilidade de existência de vida no Universo provocava a imaginação e as conversas ganhavam ainda mais cor com as constantes referências à série britânica Espaço: 1999, um êxito da televisão no final dos anos setenta, e aos livros que o Paulo lia sobre ficção científica. Recordo o fascinante “A nebulosa de Andrómeda", de Ivàn Efrémov, que li na altura, e o sugestivo “A crónica dos mundos paralelos” de Guy Tarade, que tanto o marcou.  Era, evidentemente, o mais preparado para dar credibilidade, qual ponto do teatro, às dificuldades argumentativas que iriam surgir e era o único que dominava a linguagem específica que seria necessária no confronto com o terráqueo. A logística da operação passou, sobretudo, pela gravação de sons num gravador de cassetes Orion (curioso). Pensávamos nós que a melodia e a harmonia estariam relegadas da sensibilidade desses seres e assim a composição transformou-se numa delirante montagem de excertos dos novíssimos Kraftwerk, dos Emerson Lake and PalmerRick Wakeman, aos quais misturámos uma cacofonia de sons e ruídos bizarros. Alguns anos mais tarde, ao ouvir o Helicopter Sring Quarter  e outras composições de música contemporânea de Stockhausen recordei-me imediatamente desta tarde magnífica.

 O local escolhido para o encontro foi um lugar recatado no meio do Reigás. Fazia lembrar a cávea de um teatro grego, com fragas enormes e uma mata de pinheiros e carrascos densa que acabavam num palco de erva rasteira, seca, oculto da estrada nacional por uma série de plátanos frondosos.
O Mário Cardoso vestiu a melhor camisa branca e calças de fato vincadas. O Tó  Mário, inquieto, desafiou os mais próximos a assistirem ao contacto. Só os restantes rapazolas do grupo aceitaram.

O encontro era à meia-noite daquela noite escura como breu, o ar estava quente, os extraterrestres instalados. Chegaram antes da hora e esperaram, esperaram, esperaram até à uma da manhã. Só o sussurrar nervoso do Tó  Mário quebrava o silêncio da montanha ocupada. A espera alimenta e potencia o desejo, e quando resignado se preparava para desistir, surgiram os primeiros sons: primeiro, pequenos ruídos metálicos, depois a composição aleatória amplificada pela montanha e de uma clareza surpreendente. O Tó  Mário parou, estupefacto, pediu que parassem todos, fez uma pausa no sentido de confirmar o que ouvia e num acto de coragem (sim, coragem) assumiu a liderança e toda a responsabilidade, “Calma, estamos perante um encontro com extraterrestres!” Com os seus longos braços tentava acalmar os restantes que se mostravam assustados com o fenómeno (rapazolas!). Com a “música” a ressoar, surgiu uma figura enorme ao meio da cávea que resultava da junção do penedo ao meu corpo por um lençol branco e terminava num capacete integral azul com uma bola de natal vermelha no interior. Os focos de luz apontados tornavam a figura gigantesca, irreal, sem vestígios do humano. O impacto foi tremendo. O Tó  Mário, petrificado, só reagiu depois de uma voz monocórdica, pausada, ribombar monte a baixo e se anunciar. A voz do Zé Carvalho, alterada pelo megafone de latão, era credível, e o conhecimento rudimentar da língua dos humanos servia para nos esquivarmos às dificuldades que iríamos sentir. E as perguntas surgiram em catadupa: quais eram as nossas intenções, de que galáxia vínhamos, e velocidades, e radiações, e a nave, e porquê ali, e mais e mais, e o entusiasmo era tanto que começou a aproximar-se de nós sem que antes, e numa atitude protectora,  o Tó  Mário afastasse os restantes para trás. Para o conter, o chefe, aquela massa informe, exerceu a primeira represália sobre um dos humanos – sobre o Cardoso de camisa branca imaculada e calças de fato justas. A um gesto, caiu abruptamente, rastejou, rebolou, ficou possesso perante todos, executando uma coreografia que nunca tínhamos imaginado sem a bola nos pés. Parou repentinamente e num movimento de obediência cega caminhou como um autómato em direcção à voz metálica - a nós. O pânico instalou-se no nosso cândido amigo e a surpresa em todos os outros com o estranho bailado do Cardoso. Numa atitude de grande nobreza, o Tó Mário pediu encarecidamente que não lhe fizéssemos mal, que a responsabilidade era toda dele, e que o M. Cardoso era casado e tinha filhos. A resposta foi imediata e ameaçadora: “A mentira, ao contrário do que fazem os humanos, não é admissível no nosso mundo: este humano não tem filhos.” O desespero apoderou-se do Tó  Mário: gesticulou, pediu perdão, explicou que não o conhecia bem, suplicou pela libertação do infeliz. E o desespero e a agonia aumentaram quando comunicámos que o humano iria ser sujeito a uma intervenção cirúrgica no sentido de percebermos como funcionavam os terráqueos. Nos longos minutos de espera, o Tó  Mário pouco fez, pouco disse. Vergado pelo peso da culpa juntou-se aos restantes que não conseguiam esconder o gozo proporcionado pelo espectáculo naquela noite de verão. Teria durado uma eternidade para o Tó  Mário, não fora a entrada em cena de um grupo de amigos que se dirigia para as Pedras Salgadas e decidira participar na estúpida brincadeira.“Calma, estamos perante um encontro de terceiro grau!”, repetiu o Tó  Mário, ganhando um novo folgo. A explicação detalhada do acontecimento foi cortada pelo reaparecimento do  Cardoso que descia a ravina, naturalmente, de camisa aberta, a tocar numa cicatriz que sempre tivera e que não conseguia explicar e, muito menos, o que fazia ali àquelas horas. Dirigiu-se para a carrinha com os restantes, deixando o Tó  Mário por breves instantes só. O Tó Rodrigues puxou de novo a cassete atrás, os sons iniciais ecoaram, a voz metálica ameaçou o terráqueo pela ousadia demonstrada, os focos de luz apagaram-se. O silêncio instalou-se novamente no monte.

Depressa se soube na esplanada do Café Capri e em todo o Vidago. O Tó Mário, numa excitação incontrolável, tinha perdido a noite a escrever o relatório do acontecimento a que juntou um desenho do “allien”. Desde bem cedo não tinha parado de divulgar o encontro. Era difícil dar crédito ao Tó Mário precisamente pela magnitude daquilo que descrevia. Quem o ouviu, e foram muitos, depressa concluiu que tudo não passara de uma brincadeira e, tarde dentro, os próprios rapazolas confirmaram o acontecimento, assumindo ser os responsáveis pela brincadeira.
O Tó  Mário partiu no dia seguinte.
O Tó  Mário voltou quinze dias depois. Voltou com o grupo de universitários amigos, editores de uma publicação daquela área, com o intuito de esclarecer e apoiar as vítimas desses encontros que, diziam eles,  preferiam esconder os acontecimentos a exporem-se à incompreensão e ao ridículo. Avisaram-nos, desde logo, que já tinham inspeccionado o local tal como a casa do M. Cardoso e encontrado vestígios e provas do contacto a que tínhamos sido sujeitos e que só precisavam de ouvir os nossos testemunhos para publicarem a notícia. Depois de longas horas e de uma nova simulação no local perceberam definitivamente que o Tó  Mário tinha sido o protagonista de um “encontro espectacular”, não mais.

Nunca mais vi o Tó  Mário. Nunca deixou de ser para mim, e para todos os rapazolas, um dos grandes amigos do Porto. E as férias, as Grandes, só começavam quando ele e os seus irmãos chegavam.
Demóstenes dizia que todo o homem acredita que aquilo que deseja seja também verdadeiro.
Tão humano, afinal.


Nota: este texto é um relato subjectivo baseado e idealizado a partir de dados reais.

segunda-feira, junho 4

De Vidago a Lisboa. Viagem de poucas palavras


Jogador: 

HCP Actual: 
8,5 Amador
Home Club: 
Aroeira
Sócio: 
11170


Torneio:
Camp. Nac. Clubes Mid-Amateur 2012
Data:
2012-06-02
Campo:
Vidago Palace
PAR:
72 (74,0 ; 140)

Cartão de Resultados

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Front
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15
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18
Back
Total
PAR
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5
3
5
4
4
3
4
4
36
4
4
3
4
4
5
4
5
3
36
72
Stroke
8
14
10
6
2
12
18
16
4

13
9
15
11
17
5
1
3
7


Metros
395
465
165
485
400
370
154
350
395
3179
340
335
169
345
305
530
365
525
215
3129
6308
Gross
5
6
6
6
7
5
3
4
5
47
5
5
3
5
5
8
5
6
4
46
93
To PAR
+21



Todos sabemos que cada um de nós tende a provocar aquilo que mais teme. Jogar em Vidago, em casa (casa no sentido literal da palavra), causou-me uma enorme ansiedade e confirmou o ditado popular que tanto temi - em casa de ferreiro espeto de pau. Coro de vergonha quando penso em cada buraco, em cada pancada desastrada, noventa e três, e todas da minha inteira responsabilidade.
Sem remissão, resignado, refugiar-me-ei no pinhal da Fonte da Telha.