Na cama um, Levy Martins, judeu, 59 anos, empresário. A enfermeira Cláudia com a sua voz de barítono perguntou se devia
pronunciar Levy à maneira francesa ou se um Levy grave. O senhor Levy,
habituado à dúvida, pronunciou de imediato o seu nome em francês. Ocupava a cama toda. Homem largo e
baixo, carnes maciças, olhos profundos e seguros, barbas
longas e frisadas que lhe escondiam o pescoço. Num rosto carregado um nariz bem definido, cabelo revolto puxado para trás deixavam à vista duas longas
entradas. Só os braços rotundos marcados por nódulos gigantescos, intumescências
arroxeadas e múltiplas picadas denunciavam um passado de cirurgias, enfartes e diabetes, que o levavam a reivindicar, impacientemente, a urgência do cateterismo agendado.
Já conhecia as demoras hospitalares, tinha fome, queria ir para casa cedo.
- Enfermeira, por favor, traga-me o urinol.
Na cama três, o senhor Francisco. Transportaram-no para o
quarto por volta das dez e meia da noite. O senhor Francisco vinha enrolado em si
e sobre a cadeira de rodas. Os braços longos e curvos, as mãos ósseas e esquálidas caíam pelas pernas a baixo e fechavam-no ainda mais. Puxaram-no penosamente
pelo tronco, entreabriu-se a custo com gemidos guturais, quase inaudíveis.
Colocaram o corpo na cama.
- Vá lá, Senhor
Francisco ajude um bocadinho.
Pela parte de trás da estúpida bata fendida, o corpo tolhido expunha-se de cima a baixo: completamente seco, descarnado, de pele esquálida que lhe desenhava as vértebras, a pélvis, os fémures longos, de um amarelo translúcido que se espalhava por todo o lençol.
A cabeça inclinada para trás afundava-se na almofada, e os olhos, salientes num rosto
sugado pelo vácuo, fixavam a parede. A boca sempre aberta, chupada e imóvel, não
articulava nada.
– Vá lá, senhor
Francisco beba um bocadinho de água.
E a água escorria pelos
cantos da boca fora. Engasgava-se em pequenas convulsões sem que o corpo
petrificado se soltasse.
- Descanse agora um
pouco, senhor Francisco.
Mas não. O Senhor Francisco não parou mais, numa luta desigual, lenta, numa agitação caótica com o lençol que o cobria, com a fralda,
com a gaze que lhe envolvia os dedos dos pés, com a bata verde fendida presa
por um simples laço ao pescoço, numa agonia tremenda como se tudo estivesse
feito contra ele.
Exausto. Completamente nu. O olhar paralisado, obtuso, fito
na porta, como quem espera por ser chamado.
- Oh, senhor
Francisco, o que é isto?
- Está todo molhado! Isto não se faz,
- Está todo molhado! Isto não se faz,
E eu ali, 59 anos, salvo por um cateterismo, sem dor, perante
um quadro lúgubre de final da Idade Média - a degradação de um corpo descarnado
e ressequido, e o alerta «Tu serás em breve como eu um cadáver horrendo pasto dos
vermes» (túmulo do Cardeal Jean de la Grange).
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