domingo, março 5

O meu tio Zeca

Nada sabia do meu tio Zeca. Nada sei.
Semana sim semana não, percorríamos 48 quilómetros para visitar a família na aldeia de Constantim. O meu pai nasceu lá, mas toda a sua infância e juventude passara-as por terras da raia à volta das saias da maestra Felisbela, minha avó. Por morte prematura de um pai de outras terras, ficou exclusivo da família materna, gente abastada - os Faceiras, e da aldeia que o mimou e tratou por Luizinho. Já a minha mãe era a filha mais nova de uma família da terra que partiu para o Brasil à procura de fortuna. Quando regressaram do Rio de Janeiro, logo após o nascimento de minha mãe, trocaram os dinheiros poupados por casas e pelas melhores terras da aldeia. Eram cinco os filhos: a Justina, a mais velha e por quem a minha mãe tinha uma adoração especial, o João, dono da venda e do café da terra, o Toninho, com táxi em Vila Real, o Zeca e a Lurdes, minha mãe, a mais bela e formosa da terra, nascida em tempos de abundância familiar. Todos eles casaram. Todos eles tiveram muitos filhos, o ti Zeca não.
As tardes de domingo eram passadas  na casa e na venda do meu tio João. Homem discreto e afável. A azáfama da venda e do café, o ritmo das primas que subiam e desciam com tarefas bem definidas e a atenção afetuosa que nos dedicavam tornavam estas tardes diferentes. Toda a aldeia rodava à volta da venda do meu tio, que prestava todos os serviços. Aos domingos, os homens ocupavam literalmente parte da estrada nacional à frente do café e por lá gozavam a única tarde de ócio de que dispunham. Foi nesse percurso, já rapaz e acompanhando minha mãe, que nos cruzámos com o tio Zeca. Abraço caloroso e familiar entre os dois e hesitação e estupefação minha perante o desconhecido. Cumprimentei-o perplexo e, enquanto conversavam, reparei nas feições familiares daquele rosto. Um rosto que não me era completamente estranho. Desde aí, vi-o algumas vezes mais. Sempre discreto, camuflado pelos homens da terra no café do seu irmão João. Por vezes, apanhava-o a perscrutar-nos com um olhar de quem procura pormenores do seu desenho genético nos rostos dos filhos da sua irmã Lurdes; mais de uma vez, vi-o a pedir a bênção ao pai, David, meu avô; uma ou outra vez, a cumprir o ritual na igreja onde era sacristão, diluído na exuberante talha dourada do altar, absorto de tudo o resto e sempre com o mesmo semblante. Encontrei-o também numa fotografia em casa do meu avô que tantas vezes vira e que não me despertara a mínima curiosidade. E lá estava o ti Zeca ainda menino, vestido como um adulto, quase imperceptível, apagado  pelos irmãos mais velhos e pela frescura das irmãs. Como conseguia este dom da invisibilidade? Quem era este homem tímido que ouvia muito e falava tão pouco, que no meio da gente da terra se mostrava longe das conversas, que demonstrava uma serenidade e uma bonomia constantes e que aparentava dar-se bem com a solidão?
A minha mãe dizia que era uma jóia de rapaz e que sempre fora assim - metido em si, ensimesmado. E era este ser assim que o afastava dos outros. Herdou o seu quinhão na altura das partilhas e com ele governara-se. O seu universo era a mulher, os campos, a igreja. Bastavam-lhe.Talvez tenha escolhido a obediência, o silêncio e a humildade e se tenha afastado deliberadamente dos prazeres mundanos. Este afastamento da família alargada resguardavam-no evidentemente das tensões e das questiúnculas naturais de quem está próximo, dos favores, da obrigatoriedade da retribuição, da formalidade da boa educação. Mas também o afastava da cumplicidade, do carinho e do sentimento de pertença.
Talvez fosse deliberada a sua escolha de uma liberdade mais plena. Talvez, pelo seu feitio, tivesse sido empurrado naturalmente para ela. Provavelmente, esta maneira de ser livre é, quase sempre, estar só.

sexta-feira, março 3

ITMOI, pela Companhia Nacional de Bailado



 Se juntarmos bons bailarinos, uma coreografia audaz, cenografia minimalista, com soluções a tocar no Cirque du Soleil e, claro, em boa companhia, só pode dar um belo espectáculo. No Teatro Camões.