quinta-feira, dezembro 29

Homens Bons, de Arturo Pérez-Reverte


Uma aula de história. Da Madrid beata e cinzenta à Paris iluminista e libertina, em vésperas da Revolução de 1789.

« Indica-lhe um lugar da biblioteca perante o qual don Hermógenes já se deteve, extasiado. Ali na luz plúmbea que penetra pela janela, destacam-se as lombadas douradas de vinte e oito volumes de grande formato, encadernados em pele castanho-clara: Encyclopédie, pode ler-se nos rótulos vermelhos e verdes.
- Posso abrir um?
- Por favor.
Com reverente unção, como se fosse um sacerdote que leva nas mãos o Santíssimo Sacramento, o bibliotecário põe os óculos, retira o primeiro volume da estante, coloca-o em cima da mesa do gabinete e abre-o cuidadosamente.
- Discours préliminaire des éditeurs - lê, quase emocionado, - L`Encyclopédie que nous présentons au Public, est, como son titre l`annonce, l`ouvrage d`une société de gens de Lettres...»

domingo, outubro 30

domingo, outubro 16

Ronda das mil belas em frol, Mário de Carvalho



Qualquer livro Mário de Carvalho obriga-me a ter o dicionário ao pé. Já estava à espera: um vocabulário alargado e rico, uma grande atenção à escrita. Mas ler esta coleção de contos eróticos, a roçar o vulgar e de gosto duvidoso, interrompidos amiúde pelo Priberam, e compará-los com as descrições ritmadas, licenciosas e onomatopaicas de Reinaldo Moraes que li recentemente, transformou a narrativa de Mário de Carvalho, Ronda das mil belas em frol, em algo decepcionante.

«Na hora da verdade, a experimentada, ávida e estrondosa Antonieta não queria outra coisa. Algo ela me ensinou. Regia os tempos. Escusava pressas, mas, inesperada, também precipitava delongas. Ditava e mandava, disfarçando o todo em lânguida doçura.
Cabeça revolta a dar a dar, um ofego em crescendo, com torção do corpo e arranque abismal, bradado na surpresa dum rompante ao modo popular, exigindo mais alguma coisa ou asseverando que alguma coisa estava para acontecer. Vocabulário cru, em barda. Expressões que não me eram lembradas desde a pornografia adolescente.»

segunda-feira, outubro 10

A estranheza da escolha de A vegetariana à tetralogia de Elena Ferrante para o Man Booker Internacional


«As gravações tinham ficado melhores do que esperava. A iluminação, os movimentos dela, o ambiente que evocavam - tudo estava de cortar a respiração. Considerou por um momento a possibilidade de adicionar alguma música de fundo, mas decidiu mantê-lo sem som, para dar a ideia de que tudo o que se estava a passar no ecrã acontecia numa espécie de vácuo. A delicadeza das linhas dela, o seu corpo nu coberto de flores maravilhosas, a mancha mongólica - tendo como pano de fundo o silêncio, uma harmonia silenciosa que evocava algo de primitivo, e eterno.»
A Vegetariana, de Han Kang

sábado, outubro 8

domingo, setembro 25

Uma narração poderosa, IV


Um grande prazer que se prolongou por quase dois meses.
As personagens de Elena Ferrante traduzem a fascinante complexidade humana de um bairro pobre de Nápoles e espelha também os últimos 50 anos de Itália.
Os interesses, a miséria e a generosidade, a mesquinhez, os ódios e os afetos desenvolvem-se em torno de duas personagens incríveis, Elena e Lila, numa narração poderosa e lúcida.


sábado, setembro 24

Um prémio para a má arquitetura.


Ainda a propósito do disparate do diploma que define agora que “o coeficiente de 'localização e operacionalidade relativas' possa ser aumentado até 20% ou diminuído até 10%, caso fatores como a exposição solar, o piso ou a qualidade ambiental sejam considerados positivos ou negativos”.
Surpreende-me que ninguém tenha argumentado que deve ser o oposto: que a má arquitectura tem de ser penalizada. Ou seja, que a fraca exposição e orientação solares, a má qualidade ambiental, os coeficientes que indicam falta de conforto devem ser, estes sim, agravados e, obviamente, beneficiados todos os edifícios que respeitam as normas ambientais, que se integram na paisagem, que reduzem consumos, que proporcionam uma vida melhor.

sexta-feira, setembro 16

William Carvalho


Ah! Se eu pudesse ter de novo 10 anos e escolher a equipa como fazíamos em miúdos, escolho eu escolhe tu. Se em sorte me coubesse, apontaria em primeiro lugar para o William Carvalho para jogar ao meu lado no meio campo, equipados de verde e branco.
O jogo no Barnabéu foi mais um que confirmou o brilhante jogador de equipa que ele é. A intuição e a inteligência tocaram-no. Toda a equipa roda. Toda a equipa se mobiliza. Toda a equipa brilha. As soluções rapidíssimas que encontra em situações embaraçosas são sempre de uma naturalidade desconcertante - aquele modo de jogar conforme lhe apetece, com pouquíssimos adornos: aquele avançar, deter-se, rodopiar, deixar correr a bola muitas vezes sem lhe acrescentar nada.

sábado, agosto 27

Elena Ferrante e Enid Blyton


Estranharão esta associação, mas os dois primeiros volumes da tetralogia de Elena Ferrante remeteram-me para esse prazer de ler que Os Cinco de Enid Blyton me proporcionaram nos estios quentes de Vidago de há muito tempo. A escrita luminosa, a desenvoltura da narração, as personagens incríveis e imprevisíveis levam-me a sentir de novo a sofreguidão e a excitação daqueles tempos de miúdo.


«A história é bonita, uma história dos dias de hoje muito bem articulada, e escrita de uma forma que nos surpreende constantemente; mas o essencial não é isso: é a terceira vez que leio o livro e em cada página há algo de poderoso que não consigo compreender de onde vem.» 
História do Novo Nome, Elena Ferrante

domingo, agosto 14

A Amiga Genial, Elena Ferrante


Segui o conselho de Carlos Vaz Marques no clássico inquérito de verão da Visão, e não podia estar mais de acordo com ele: sei que terei saudades de Elena e Lila quando terminar o último livro da tetralogia de Elena Ferrante.
O primeiro, A Amiga Genial, é delicioso.

« Lila, com um rubor repentino na garganta e em torno dos olhos, puxou o marido energicamente pelo braço e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. Sílvio fez um ligeiro gesto aos filhos, Manuela olhou-os com orgulho de mãe. O vocalista começou a cantar Lazarella, imitando sofrivelmente Aurelio Fierro. Rino convidou Marcello a sentar-se, com um sorriso amigável. Marcello sentou-se, desapertou a gravata, cruzou as pernas.
O imprevisível só nessa altura se revelou. Vi Lila perder a cor, tornar-se pálida como era em miúda, mais branca do que o vestido de noiva, e os olhos tiveram aquela repentina contracção que os transformava em duas fendas. Tinha uma garrafa de vinho na frente, e temi que o seu olhar a trespassasse com uma violência tal que a fizesse em mil estilhaços, com o vinho a esguichar por todo o lado.. Mas ela não estava a olhar para a garrafa. Olhava para mais longe, olhava para os sapatos de Marcello Solara.»

Por Olhão

Uma bela semana.

quarta-feira, agosto 3

Ravelstein, de Saul Below



«Se não sair como um chilrear de um pássaro, não vale nada
Talvez o meu ouvido não estivesse preparado para este Saul Below, Ravelstein.


sábado, julho 23

Pornopopeia. Uma festa de safadezas e de bem escrever



«Seguinte: quando ouvi aquela segunda salva de palmas no portão, desapeei o HP da minha barriga e fui até à mureta da varanda, de onde enquadrei minha musatlântica num lindo plongê, ela carregando o que parecia uma cambuca de tamanho médio envolta num pano branco de algodão impecável de limpo. De cabeça baixa, jogava olhadinhas curtas pros lados, aflita. Veio com o mesmo shortinho de sábado, lavado e passado de novo. Aquela sabe tirar o máximo do mínimo. Ergueu o olhar rapidamente, me viu e teve um estremecimento. Achei que fosse chispar dali num risco horizontal de cartoon, e, antes que isso acontecesse de verdade, pulei de três em três os degraus de tijolo escorregadio e fui abrir o portãozinho para recepcionar a visita. Antes que eu pudesse abrir a boca, e sem dizer nada ela também, Josilene me passou a cambuca e arremeteu para dentro de casa, subindo a escada de dois em dois degraus. Segui atrás dela observando que, junto com shortinho hipersexy, a Jôsy tinha se lembrado de trazer o mesmo par de pernas acobreadas que eu tinha cobiçado durante uma tarde inteira lá nas Rocas, sem falar naquela bundinha fenomenal, ali, ao alcance da mão. Fiquei só assistindo àquele espetáculo glúteo, enquanto sentia nas mãos a mornidão da cumbuca bojuda que desprendia um forte perfume a coentro.»
Reinaldo Moraes, Pornopopeia, Quetzal

terça-feira, julho 12

Três ou quatro coisas sobre o Europeu


Este europeu representou um retrocesso no futebol espetáculo que tem vindo a ser seguido pelo futebol ao nível de clubes. Neste contexto de futebol de cariz pragmático, a equipa portuguesa é uma justa campeã. Fernando Santos é inteligente, perspicaz, ouve tudo e todos e isso reflectiu-se nas diversas alterações na composição da equipa ao longo do campeonato. Ainda assim, e a mim que ninguém me ouve, o treinador campeão não conseguiu contrariar a previsibilidade do jogo português com Ronaldo em campo nem conseguiu resistir à promoção meteórica e exclusivamente mediática da pop star Renato Sanches. 

terça-feira, junho 28

Bicicletas


Já tudo foi dito sobre Amesterdão: água, muita água; turistas, muitos; muitas flores; milhares de bicicletas. Mas foram as bicicletas - pardas, ferrugentas, qual erva daninha,  que me impressionaram mais. O binómio bicicleta/holandês parece fruto de um aperfeiçoamento “genético” ao longo dos tempos. Quase modelo único: discretas, roda alta, volante elevado puxado para trás, uma distância dos pés ao chão digna de uma confiança e equilíbrio naturais. A forma sisuda da bicicleta dilui-se e faz com que seja fácil distinguir os habitantes de amesterdão, permitindo  às belas holandesas uma postura vertical, costas bem direitas num movimento pendular das longas pernas, olhar altivo, e uma elegância e naturalidade desarmantes.  

sábado, junho 11

Morbidezza

Bronzino

«A palavra que significa melhor o seu corpo é: turgente. Açodada pelas minhas ficções salazes, tudo nela se torna curva e proeminência, sinuosa elevação, de têmpera branca. Essa é a consistência que o bom degustador deveria preferir para a sua companheira na hora do amor: terna abundância que parece a ponto de se derramar mas que se mantém firme, solta, elástica como a fruta madura e a massa recém-amassada, essa terna textura que os italianos chamam morbidezza, palavra que até aplicada ao pão soa a lasciva.»
Mário Vargas Llosa, Elogio da Madrasta

segunda-feira, abril 11

“Look at me”


O “Look at me” mais suplicante e delicioso que já ouvi. Entre o ciciar de palavras de circunstância, o nervosismo das mãos num corpo tenso, o olhar que procura algo em que se fixar, o tímido pedido de desculpa já com os primeiros acordes e, depois, a transformação repentina para o vozeirão seguro, convicto e apaixonado de Sarah Vaughan, fazem deste Misty, e em particular deste registo em Montreux, um apelo irresistível.


quarta-feira, abril 6

Vozes de Chernobyl, Svetlana Alexievich




"Lembra-se...? Dostoiévski descreveu... Como um homem chicoteava o cavalo nos olhos mansos. Homem louco! Não na garupa, mas nos olhos mansos..."


A Vitória do número



A estratégia de Rui Vitória explica-se facilmente: acredita que a quantidade de jogadores em disputa direta da bola é proporcional à possibilidade de a dominarem. Simples. Matemática pura e simples. O Professor rendeu-se a Pitágoras - tudo é número. Sem pudor e se necessário, defende com toda a equipa no último terço; atreve-se, atacando com um número semelhante à das equipas que defendem; disputa cada bola em qualquer espaço com maior número de homens. Apregoa, sem o semblante de um general romano, o mérito do coletivo, mas dificulta, com a estratégia eficaz que adotou, qualquer pretensão de individualismo e criatividade.
Para os amantes do ludopédio, e num espetáculo como o futebol tem que ser, é possível aproximar a arte de bem jogar à estratégia fria dos números?
Sim, é possível: vejam Jesus e seus apaniguados.

sexta-feira, março 25

Quando o futebol se deslocou para norte



Na década de 70, todos percebemos que havia mais do que o futebol brasileiro. Sim, até ali não havia mais nada. O futebol europeu resumia-se a um jogo esforçado, dedicado e estéril.
Aquelas camisolas brancas de tira larga vermelha do Ajax surpreenderam-nos. Todos nós, miúdos agarrados a uma bola desde que nascemos, arregalámos os olhos para perceber este comportamento coletivo contracultura, de movimentos largos, de movimentações sincronizadas e de uma criatividade dada a solistas de outra estirpe.

quarta-feira, março 16

Dividir, serrar e tirar. Um livro brutal. E belo.



"Todos aqueles anos em que estive ausente, os meus amigos viveram-nos numa completa euforia: a revolução realizara-se! O comunismo caiu! Todos estavam confiantes em que tudo se comporia, porque na Rússia havia muitas pessoas instruídas. Era um país rico. Mas o México também é um país rico... Não se compra a democracia com petróleo e gás, nem se pode importar, como as bananas ou os chocolates suíços. Nem se proclama por um decreto do Presidente... São necessárias pessoas livres, e não as havia. E continua a não haver. Na Europa há duzentos anos que cuidam da democracia como quem cuida da relva. Em casa, a minha mãe chorava: «Tu dizes que Estaline era mau, mas com eles nós vencemos. E tu queres trair a pátria.» Um velho amigo meu veio visitar-nos. Bebemos chá na cozinha: «O que vai acontecer? Nada de bom acontecerá, enquanto não fuzilarmos todos os comunas.» Mais sangue? Alguns dias depois entreguei os documentos para sair do país..."
O Fim do Homem Soviético, Svetlana Aleksievitch 

domingo, janeiro 24

Purity, de Jonathan Franzen


Às primeiras páginas, temi o pior Franzen. Mas Pip e os outros personagens rapidamente emergem como pessoas complexas e desiguais, e colocam Purity na linha de Correcções e Liberdade. Bom, muito bom. Um longo prazer.

"... mas para Andrea era como se a Internet fosse principalmente governada pelo medo: o medo da impopularidade e da reprovação, o medo de falhar, o medo do desprezo ou do esquecimento."