domingo, janeiro 31

Naquele tempo


«Enquanto cresci, o homem não era emancipado no reino sexual. Era um homem de segunda apanha. Era um ladrão no reino sexual. Surripiávamos uma apalpadela. Roubávamos sexo. Adulávamos, suplicávamos, lisonjeávamos, insistíamos – todo o sexo exigia luta, tinha de ser disputado aos valores, senão à vontade da rapariga. O conjunto de regras determinava que tínhamos de impor a nossa vontade à rapariga. Era assim que ela era ensinada a manter o espectáculo da sua virtude. Ficaria confuso se uma rapariga comum se oferecesse, sem uma infinita importunação, para quebrar o código e praticar o acto sexual. Porque ninguém, de qualquer dos sexos, tinha alguma noção de que recebia à nascença um direito erótico. Era desconhecido. Ela podia, se estivesse caída por nós, concordar com uma punheta – que significava essencialmente usar a nossa mão com a dela como um encaixe -, mas que alguém consentisse alguma coisa sem o ritual do cerco psicológico, de perseverante e monomaníaca tenacidade e exortação, bem, isso seria impensável. Não havia, com certeza, possibilidade de conseguir um broche a não ser usando de uma perseverança sobre-humana. Eu consegui um em quatro anos de universidade. Era tudo quanto nos era permitido. Na cidade rústica das Catskil, onde a minha família tinha um pequeno hotel de férias e eu atingi a maioridade nos anos quarenta, a única maneira de ter sexo consensual era ou com uma prostituta ou com alguém que fora a nossa namorada durante a maior parte da nossa vida e com quem toda a gente calculava que íamos casar. E nesse caso pagávamos o que devíamos, pois frequentemente casávamos com ela.»

in Animal Moribundo de Philip Roth, Dom Quixote

Egon Schiele, Reclining Woman with Green Stockings - 1917

quinta-feira, janeiro 28

Se o ambiente é transmontano, um texto de Rentes de Carvalho


Dádiva
Ouvia-se o som de uma caldeira a arrastar pelo chão, outra a ser pendurada nas lárias, o bater ritmado duma tenaz num toro. Mais perto de nós, no curral, os chocalhos badalavam ligeiros se alguma ovelha se mexia, as muares davam de vez em quando uma patada inquieta, e por detrás da parede o ressonar dos porcos parecia de gente. Muito longe, a coruja continuava os seus pios, mas pouco a pouco mesmo as cobras e os ratos foram silenciando, dando a ilusão de que o mundo inteiro tinha adormecido.
Nessa grande paz ela despiu-se, beijou-me, deixou-se acariciar, zombando em murmúrios da minha pressa, ora a travar-me o ímpeto, ora a picar a minha inocência, como se o saber-me pueril aumentasse a sua excitação. Proibia um beijo, provocava uma carícia. Escapava ao meu abraço e revirando-se prendia-me entre as suas pernas, gozando a vitória, mordendo os meus lábios até perder o fôlego.
Louco de desejo como estava e bêbedo dos seus cheiros, ela facilmente podia ter feito de mim um joguete. Mas não fez. Dando-se conta de que eu não saberia prender o seu corpo ao meu, de novo me foi mansamente guiando, a mostrar como cada emoção tinha um ritmo, como o prazer se tomava em sorvos, ora animais, ora delicados.
A pele macia colava-se à minha, a fundir-se nela, enquanto os seus dedos, outras tantas garras, me pertur¬bavam com um sentimento estranho, desencon¬trado, que era medo e êxtase, proibição e fascínio.
Quando o quis ofertou-me o seu corpo, mas para a dádiva e para o momento não há palavras.

terça-feira, janeiro 26

Vidago: a Piscina do Palace

Ela ajuda a tirar as alças com um encolher de ombros. Tem catorze anos e um namorado trapalhão. O látex molhado agarra-se à casca do pinheiro. Lápis-lazúli e verde demarcam um território animal entre os balneários e o hotel. A década de sessenta chega ao fim.
Embora decadente, o Palace abrira uma clareira no parque. Ao lago romântico seguiram-se o ténis e o campo de golfe, era a vez da piscina continuar um ciclo de equilíbrio se uma visão tardo-moderna não implantasse o apêndice da estalagem.
Lembro o inibidor hall para uma criança domingueira habituada às missas e aos almoços no Santa Cruz de Boticas. Jovens distantes descem à-vontade as escadarias espelhadas atravessando o longo corredor em fato de banho. Famílias que nunca cumprimentaríamos deslizam do salão de jogos para a sala de leitura. O silêncio dos empregados aumentava o pé direito. O Verão chega e abre o hotel a sonhos de águas sulfurosos; cortinas adejantes nas sacadas, a grande lona na escadaria de granito, o preto e o branco dos criados.
Era uma infância maldita de proibições e clara à estratificação. Passar os portões mesmo pela mão de privilegiados progenitores equivalia a entrar no domínio do protocolo, onde o sofrível poder local estava excluído e o acesso era uma excepção beneplácita.
Mas a adolescência é uma idade insurrecta; na noite do arraial de Stª Bárbara, seis rapazes da cidade saltam clandestinos a vedação e lançam-se à piscina nus. Ainda molhados, fazem peões nos seus minis em frente às cavalariças. No dia seguinte, ei-los cúmplices, com uma respiração acidulada do vinho e leite, no esplendor da relva.
E o grande vaso faísca ondas de sol na sua pastilha, desenhando sob cuprésseas seculares o contorno de uma víscera. Saltos mortais excêntricos e sem escola fazem cochichar as raparigas. Limonadas e tostas mistas no bar, longas cadeiras de ripado e mergulhos no aquário, distendem um tempo púbere para sempre evanescente.


Júlio Teles Grilo, Arquitecto

As árvores da minha vida

segunda-feira, janeiro 25

Vidago Palace Hotel, 1910-2010

«Antes da inauguração, há cem anos, o pequeno rei ficara alojado no quarto, exactamente aquele, diante do lago, as portas abertas para uma pequena varanda. Cem anos antes, o pessoal alinhado e engomado e bem vestido na escadaria aguardava o desfile de carros e carruagens que subia a estrada de terra vinda da colina de vinhas e oliveiras - estava previsto que, cem anos depois, à medida que os convidados abandonassem o hotel, despedindo-se, deixando atrás de si o grande casarão cor-de-rosa, o toldo às riscas, os candeeiros de ferro forjado, os torreões laterais, sob a luz tardia de um domingo de Novembro, cada carro daria duas voltas inteiras em redor do lago e seria aplaudido pelos criados e pessoal do hotel: general manager, o gerente, dois administradores, camareiras, porteiros, recepcionistas, escriturários, contabilistas, criados de mesa, um escanção, dois bagageiros, um dos cozinheiros, o director do campo de golfe, dois jardineiros, a chefe de lavandaria, até um médico, o médico privativo do hotel. Treinaram os aplausos durante uma semana, mediram o compasso, calcularam o tempo que cada carro levaria para completar duas voltas ao lago. O pequeno rei subiu esta escadaria, ouviu os aplausos cem anos antes sob o rugido dos trovões, o vento atravessando a floresta, o primeiro frio do ano, que lhe seria fatal.»

Francisco José Viegas, O Mar em Casblanca, Porto Editora