sexta-feira, abril 29

Ernestina

Recordações de Estevais, uma entre tantas aldeias de Trás-os-Montes na primeira metade do século XX.  Mas também de Gaia e do Porto e das viagens de comboio pelo Douro até às fragas do Tua e do Sabor. Memórias que balançam entre o paraíso e o inferno. Uma prosa deliciosa que eu já conhecia do blog e que agora me fará ler toda a sua obra.

“Ofegante, os olhos em brasa, durante um momento aceitou as carícias, mas eu próprio me dei conta de como era ainda desajeitado e inexperiente. Então ela, a desvendar-me as maneiras e os segredos do seu corpo, prendeu a minha mão na sua, guiou-a a mostrar por onde ir, onde demorar, encostando-a aos seios, ensinando-lhe a leveza das carícias, fazendo-a penetrar pouco a pouco onde eu não teria ousado.
Parámos ao ouvir o barulho de gente que entrava na cozinha e logo de seguida o falsete da tia Jacinta:

- Onde é que estais metidos, ó mafarricos?”

In Ernestina de Rentes de Carvalho, (p.309)

segunda-feira, abril 25

Mil anos

Na primeira aula e para justificar este meu ar gasto, costumo perguntar aos alunos se imaginam há quanto tempo estou na escola. Perante o encolher de ombros tento responder com alguma naturalidade: não sei se é neste ou no próximo ano que faço mil. Alguns riem, outros, cruéis, acreditam. É verdade, entrei aos 4/5 anos pela mão da Senhora Professora Felisbela, minha avó, e ainda não saí. Não exagero se disser que, desde muito pequeno, tudo o que se relaciona com Escola - o ensino, professores, alunos, exames, ministros da educação - é o tema da conversa que pauta regularmente as refeições de minha casa.
Em manhãs primaveris seguia a minha avó até à escola em Vila Verde de Oura, perto de Vidago. Levava a pequena ardósia, um caderno e meia dúzia de lápis de cor onde me refugiava dos primeiros olhares dos alunos. Não ia sempre porque só atrapalhava e a professora reprovava a excessiva liberdade do neto.
Recordo com particular acuidade as bofetadas que a minha avó dava ao Augusto. Mesmo para os seus catorze anos, o Augusto era grande e forte, o dobro dela, dócil, gentil, mas incapaz de fazer a quarta classe. Desesperava-a pela falta de memória e pela incapacidade de resolver o que quer que fosse. “Augusto baixa-te…” O rapaz, submisso, vergado pela vergonha, aproximava-se, e zás… Não usava a régua, mas paralisava os quarenta e tal alunos de roupas remendadas das quatro classes com o olhar por cima dos óculos ou, em último caso, com a ameaça de “Vou dizer ao teu pai.
Quando os dias se tornavam maiores e o exame da 4ª classe se aproximava, arrastava-os para a varanda da nossa casa e prolongava até à noite as aulas, os raspanetes e os puxões de orelhas. Tempos difíceis aqueles!
O que recordo da escola dos anos sessenta é o ambiente tenso, o medo que nos roía as entranhas, os velhos mapas de um Portugal imenso, os rostos de Salazar e Américo Tomás que ladeavam a cruz de Cristo, a ladainha das tabuadas, os sublinhados vermelhos dos erros ortográficos. E o Ilídio, o herói da classe, que ultrapassava todos os limites e levava tantas reguadas quantos os erros dados, sem verter uma lágrima! Recordo, ainda, alguns anos mais tarde, o emigrante Augusto dobrar-se novamente perante a minha avó, agora para agradecer todo o empenho e interesse demonstrados. “Queria o nosso bem, ah!” – e não se enganava.

Já na minha adolescência, e com o 25 de Abril, a educação foi finalmente considerada como factor diferenciador e decisivo do regime democrático. A escola, tal como o país, transformou-se numa festa e aberta a todos. Democratizou-se, humanizou-se e levou para o seu seio toda a diversidade e os problemas de uma sociedade pobre e analfabeta. Até aí, a escola pública servia para simplesmente ensinar a ler, a escrever e a contar, e, para uns quantos, muito poucos, um meio de chegar à faculdade.

Se o espaço escolar se tornou num local aprazível, já a sala de aula, na sua essência, não se alterou significativamente, não podia (embora alguns “iluminados reformadores” nos pedissem que também a sala de aula fosse uma festa), nem pode ser diferente, porque para os jovens que todos os dias têm de ultrapassar dificuldades, de se confrontar com eles próprios e com os outros, aprender é entrar em contacto com as coisas que não se conhecem e o que se desconhece faz medo. E é por isso que a relação entre alunos e professores na sala de aula se mantém naturalmente tensa. Mas nem por isso os nossos alunos, tal como o Augusto, deixam de reconhecer a importância que cada um de nós tem para as suas vidas, pela atenção e generosidade dispensadas. Já não tiram o chapéu nem se dobram, mas sorriem, com um sorriso que nós conhecemos tão bem e nos enche a alma.

quinta-feira, abril 21

Decepção e alívio

Pepe, incrédulo, acabava de cabecear ao poste. Decepção e alívio é a legenda do El País para esta fantástica fotografia. (clique na imagem)
Na minha opinião, a legenda é a mais adequada para caracterizar o sentimento das duas equipas no final do jogo. Agora de forma inversa: os madridistas, depois de desaires anteriores, ganharam um fôlego que pensavam esgotado; os catalães ficaram decepcionados pelo seu futebol ter sido beliscado pelo histórico rival. O jogo foi intenso e espectacular. Mourinho, desde os 5-0, foi o primeiro a reconhecer a supremacia da equipa de Barcelona e construiu uma equipa para suster, resistir e cansar uma equipa que encanta pela subtileza, pela paciência, pela posse exaustiva da bola e pelas soluções mais imaginativas. Do outro lado, Guardiola sabe muito bem que à frente da equipa merengue está um treinador carismático, excessivo, inteligente, capaz de transformar qualquer grupo numa equipa de incondicionais seguidores. E para isso acontecer era fundamental ganhar este jogo.

segunda-feira, abril 18

Hola

Urbanidade. É o que me ocorre depois de cinco dias em Barcelona. No dicionário: «conjunto de formalidades, de palavras e actos que os cidadãos (a cidade) adoptam entre si para demonstrar mútuo respeito e consideração; boas maneiras, civilidade, cortesia»

sábado, abril 9

Divino


Para quem gosta de golfe, Abril  é tempo do mais espectacular e mítico de todos os torneios - O Masters de Augusta. Mas numa altura em que o Japão, país devoto à modalidade, é notícia pelo devastador tsunami, ocorre-me colocar aqui um belíssimo excerto do filme Lost in Translation que congrega tudo isto. Bill Murray, enquadrado pelo Monte Fuji ao fundo,  interrompe, por instantes e num movimento perfeito, o silêncio que o envolve e  transporta-nos deste mundo a um outro superior - divino.

sexta-feira, abril 8

Cartas de Vidago, Para cá do mar

Entre dois ambientes e formas de gozar as sempre ambicionadas férias, mini férias, fins-de-semana e outras escapadelas, a generalidade da população continua a seguir a tendência iniciada pouco depois da segunda metade do século vinte: a troca do campo, do termalismo e do turismo de montanha, pela maresia, o marulhar, o sol, o mar, a areia, o bronze e os biquínis… A magia e o inebriamento deste ambiente foram mais fortes e arredaram os veraneantes do interior para o litoral, num desequilíbrio vertiginoso. O fluxo de tráfego inverteu-se e todos os caminhos e placas apontaram para o oeste e o sul atraindo os turistas numa corrida desenfreada de carros e carrinhas com malas e tejadilhos a abarrotar. Nesta direcção seguiram também as betoneiras para adensar a floresta de betão que entretanto medrou exponencialmente. Em seu detrimento, durante as últimas quatro décadas, milhares de camas de hotéis e pensões do interior ficaram vazias, enferrujadas ou carunchosas. Os seus salões, outrora palcos de animadas festas e atracções variadas, encheram-se de teias e largam pedaços de estuque, deixando vislumbrar uma impossível recuperação. À medida que os anos passam, mais se acentua a falta de esperança de ver aquelas decrépitas ruínas ressurgirem do inexorável abandono. O escombro parece ser o destino mais certo. Numa verdadeira apologia à ressuscitação, o homem verga-se perante a conjugação do belo natural e do arquitectónico e chega a tempo de restaurar o esplendor do Vidago Palace Hotel e a sua envolvência, evitando que também seja dizimado pela lei do abandono. Salva-se assim do escombro um irredutível recanto cuja beleza resiste e sempre consegue fragilizar a insensibilidade, impondo-se aos autores do paralelepípedo à beira mar plantado. Imponência, requinte, luxo são parcas palavras para caracterizar o resultado desta obra que se colou com fidelidade à sua origem do início do século XX e contrasta com o espaço completamente novo do SPA de linhas arquitectónicas actuais. Aqui, o cheiro a maresia é substituído por um “cocktail” de aromas feito com os ingredientes silvestres das variedades de árvores e arbustos, que não só perfumam o ar como conferem à paisagem a aprazível cor verde da ramagem e da relva tratada com esmero. A Primavera salpica-a com a ponta do pincel multicolor. No Verão, com temperaturas menos suportáveis, sabe bem o refúgio debaixo da frondosa folhagem. E o Outono, com a sua palete de tonalidades gradativas, pinta-a como nenhum outro artista, deliciando a vista ao espectador. O Inverno, não é por ser o mais frio, nebuloso e sombrio que desfeia o panorama. Ele tem também a sua beleza. A neblina do fim das curtas tardes começa a ofuscar os ramos agora despidos criando um clima de um certo misticismo. A temperatura desce, os ombros aconchegam a gola do casaco ao pescoço e chega o momento de sentir o reconfortante crepitar das achas que alimentam o fogo da lareira convidando ao relaxamento, à reflexão ou à amena cavaqueira, com o olhar posto na variância das chamas. Nesta região, longe do mar, não se ouve o marulhar das ondas mas sim o murmúrio das folhas quando são agitadas pela brisa. Também se ouve o silêncio das montanhas que ajuda ao restabelecimento depois de meses de balbúrdia citadina. Em vez de se sulcar a vasta imensidão de água com as quilhas das mais variadas embarcações de recreio, pode-se sulcar picadas montanhosas e florestais com os cascos do cavalo ou com os pneus do todo-o-terreno. Pode-se estimular a adrenalina voando na asa delta, no pára-pente ou no cabo de aço, imitando o planar das grandes rapaces ou o voo picado do falcão. Pode sentir-se a agradável sensação de ver a bola de golfe a rasgar o ar depois de uma tacada desferida com todo o rigor que a modalidade exige e vê-la pouco depois a entrar no buraco, inebriando-se com o sabor triunfal de ter conquistado uma pancada ao “par” do campo. Os apetecíveis courts de ténis fazem também parte deste rol, para quem gosta de ouvir o som recheado do impacto da bola na raquete. E, depois de toda esta azáfama recreativa e de lazer, só falta mesmo o reconfortante Sanus Per Aqua com os relaxantes banhos, jactos e jacuzzi. Para os saudosistas da época áurea do termalismo, não há melhor escolha. Para ajudar a limpar as mazelas do inferno citadino, tem aqui o paraíso um sério concorrente, com a vantagem de se poder usufruir dele em vida. Psicólogos, psiquiatras e outros terapeutas da mente e do espírito, poderão contar com mais um conteúdo para as suas receitas. Amantes da calma, do repouso e da meditação têm aqui o seu espaço recomendado. Amantes do coração encontram aqui os recantos ideais para uma recheada dedicação e envolvimento. Os adoradores do sol, do mar e da areia fazem bem em dar descanso à sua pele e experimentar outras formas de revigorar os seus corpos. A recuperação deste espaço turístico pode despoletar a restauração e reactivação de outros, contribuindo para o despertar de uma letargia já longa. Cabe aos organizadores, promotores, divulgadores turísticos e às próprias direcções dos estabelecimentos hoteleiros a criação e concertação de atractivos e ofertas adaptadas aos recheios das mais variadas bolsas e aos interesses dos visitantes no sentido de rentabilizar os investimentos feitos e de dinamizar o turismo e a economia regional.
José Manuel Carvalho (j-carvalho@sapo.pt)

segunda-feira, abril 4

Um aviso

"Si los ricos no pagan impuestos se enfrentarán a una revolución" (El País). Quem o diz é Paul B. Farrell, um prestigioso colunista do The Wall Street Journal.

Avisa, ainda,

"la brecha entre el 1% de los "súper ricos" y el 99% restante de la población en EE UU no había sido tan grande desde la Gran Depresión de 1929"...

sábado, abril 2

Não cessa de ladrar, pedindo sempre mais...

...............................................................Francesco Salviati, As três parcas
Padre Anselmo Borges, no DN, citando:

"Os cães, quando recebem algo, ficam mansos; mas o usurário, quando embolsa o seu dinheiro, irrita-se tremendamente. Não cessa de ladrar, pedindo sempre mais... Mal recebeu o dinheiro e já está a pedir o dinheiro do mês em curso. E este dinheiro emprestado gera mal atrás de mal, e assim até ao infinito."...

e, ainda:

Como escreveu Daniel Bessa, "o Estado português está há muito em processo de falência. A culpa é de todos nós, a começar por mim, que nunca o disse de forma audível, com esta clareza".