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sábado, dezembro 26

Uma declaração de amor aos livros. Irene Vallejo

«Os livros convertem-nos em herdeiros de todos os relatos: os melhores, os piores, os ambíguos, os problemáticos, os de duplo sentido. Dispor de todos eles é bom para pensar, e permite escolher. É difícil evitar o sobressalto perante a mistura de criatividade, esplendor, violência e agravos característica das civilizações que estabeleceram os alicerces na Europa.»  O Infinito Num Junco, Irene Vallejo 
 
No El País 
«Mario Vargas Llosa se rindió ante este libro, cuya razón de ser descifra así: “Me impresionó mucho El infinito en un junco, que leí de corrido. Mi impresión fue tan entusiasta que hice algo que no suelo hacer: escribirle a la autora una cartita muy cariñosa felicitándola por la belleza de un libro maravillosamente escrito, en el que toda la sabiduría está disuelta en una crónica simpática, agradable, nada pretenciosa, explicando la maravilla que es la lectura y los inmensos beneficios que ella nos depara. Por ejemplo, leer un libro tan valioso como El infinito en un junco, donde se describe la aparición del libro en la Grecia clásica, lo que significó la Biblioteca de Alejandría y el enriquecimiento personal que para Irene Vallejo y todos los lectores del mundo significa aprender a leer. No me extraña que ese libro haya tenido tanto éxito en España y ojalá lo tuviera también en los países latinoamericanos y en el resto del mundo, porque en sus páginas uno descubre las infinitas ventajas que trae al ser humano la lectura»                                                                                                          

segunda-feira, agosto 19

Recordações de um europeu


É absolutamente imperioso ler este livro. Pela qualidade literária (que gozo); pela oportunidade dos temas, nesta época de ressurgimento dos nacionalismos e o retrocesso civilizacional de uma desagregação do projecto europeu; pela descrição que faz de muitos intelectuais que privaram com ele...
Brilhante. A reler.

quinta-feira, maio 16

Para quem gosta de Agustina, O Poço e a Estrada

Uma biografia a partir das obras, correspondência, entrevistas na imprensa ....
Os livros preferidos de Isabel Rio Novo. Um Cão Que Sonha, Embaixada a Calígula, Fanny Owen, Homens e Mulheres, Ronda da Noite.

segunda-feira, março 11

Faial, Pico e São Jorge, pelos olhos de Vitorino Nemésio. Magnífico


«Margarida curvou-se sobre a cruz, e ali abriu e dispôs as suas despedidas de verão. Depois, persignando-se, ficou um momento recolhida. Um melro voou do muro do cemitério e foi esconder no galho de uma árvore o seu assobio dobrado, um destes módulos que, em coro crescente, enchem de torpor e de sonho as madrugadas das ilhas. Depois sentiu-se uma grande chilreada, o frémito de várias asas, e uma nuvenzinha de melros, precedida do par que guerreava, perdeu-se para os lados do pico.»
Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio

terça-feira, janeiro 22

A Síbila, de Agustina Bessa Luís


Um livro que me tinha impressionado há muitos anos e que, na altura, exigi a mim mesmo uma nova leitura. Trinta anos depois, uma opinião definitiva: não conheço melhor. Denso, inteligente, brilhante!

«Quina espiava-o, sem, porém, deixar que ele a surpreendesse. E tomava-a uma secreta alegria, ao sentir de novo a familiaridade de todos aqueles objectos, os ancinhos, as velhas foices desdentadas no vão escavado da parede mestra, a lareira com a pequena cafeteira que fervia e cujo silvo era o acompanhamento adequado ao ronronar dos gatos. Por uma frinchazinha da pálpebra, advertia a atitude amuada e puerilmente orgulhosa daquele homem cuja estreita fronte se franzia num esforço tocante de se mostrar penalizado por uma ofensa. E ela ria-se intimamente; e as lágrimas afogavam-lhe o riso, e as suas mãos tremiam ao tocarem a tampa da cafeteira que oscilava ao ferver. O grande luar e a atmosfera toda azul viam-se da janela de grandes abauladas; os cães ladravam aos rumores da noite, e sonoramente a água caía de alto sobre o tanque, desenhando círculos que eram como rugas de vidro.Quina estendia os seus pequenos pés, os calcanhares poisados nas chinelas; o lenço, puxado sobre a boca, dava-lhe um ar misterioso e quase jovem.»
A Síbila, Agustina Bessa Luís

quinta-feira, novembro 1

Garrincha



Mais uma biografia maravilhosamente escrita por Ruy Castro. Agora sobre o jogador mais amado pela geração de 50/60.  Mané Garrincha - da infância selvagem à destruição pelo alcoolismo.

«Garrincha foi então deixado sedado e sozinho - uma estrela mais solitária do que nunca naquela noite imensa. Todo o interior de seu corpo estava em revolução. Esse corpo já não lhe pertencia para as arrancadas de Pimpinela Escarlate pela ponta direita, para as freadas bruscas que faziam guinchar as chuteiras, para as torções de circo em que os seus músculos e ossos pareciam de borracha nem para a mortífera potência de colocação de seus chutes. Não lhe servia também para ter prazer e dar prazer às muitas mulheres que ainda poderia possuir pela vida. Não lhe servia nem mesmo para absorver e metabolizar todas as garrafas que ainda pretendia beber. Já não lhe servia para nada. A autópsia revelaria que seu cérebro, coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino delgado e rins já estavam parcialmente destruídos.»
 Ruy Castro, Estrela Solitária, Tinta da China

segunda-feira, agosto 27

Agosto com os Karamázov



«Tal fama havia adquirido Fiódor Pavlovitch Karamázov, que, decorridos treze anos após a sua morte, de maneira sombria e trágica como vereis a devido tempo, ainda causa comentários cheios de interesse aos vizinhos da comarca onde viveu. Por agora, limitar-me-ei apenas a afirmar que este proprietário que não dedicou um só dia às suas terras era um tipo raro. Não porque não abundem aqueles que à degradação dos vícios unam a insensatez das ideias; mas Fiódor pertencia a esse grupo de isentos capazes de se aferrar obstinadamente  ao interesse material dos seus negócios e não dedicar qualquer espécie de interesse a tudo o resto. Começou com quase nada, e uma posição das mais modestas; mas, impondo a sua presença em casa dos vizinhos, e conquistando com arte um lugar às suas mesas postas, amontoou os cem mil rublos que, em moedas, foram encontradas em arcas quando da sua morte. Recebeu sempre as honras dispensadas aos homens mais extravagantes e fantásticos da região. Dissemos que não era tolo, já que muito astutos e inteligentes são estes indivíduos fantasiosos; mas era caracterizado por essa insensatez peculiar do Russo que possui uma manifestação própria.
Casou duas vezes e teve três filhos: um, Dmitri, o mais velho, da primeira mulher, e dois, Ivan e Alexey, da segunda. A primeira esposa, Adelaide Ivanovna, pertencia à família dos Miusov, uma das mais nobres e opulentas, e dona de considerável extensão do nosso território. Não tentarei explicar como foi possível que uma rica herdeira, que à sua formosura unia a fortaleza de espírito e inteligência tão comuns às jovens de hoje, mas que, naqueles tempos, eram um dom raro, contraísse matrimónio com um aldrabão tão desprezível, como todos apelidavam o marido.»
Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov, Ed. Saída de Emergência 

terça-feira, julho 3

Ler e reler Philip Roth


«Escrever era a única coisa que valia a pena, a experiência excepcional, a luta exaltada, e não havia outra maneira de escrever que não fosse fanaticamente. Sem fanatismo, nada de grandioso se alcançava na ficção. Nathan tinha no mais alto conceito possível as gigantescas capacidades da literatura para engolir e purificar a vida. Escreveria mais, publicaria mais, e a vida tornar-se-ia colossal.
Mas o que se tornou colossal foi a página seguinte. Pensava que tinha escolhido a vida, mas o que tinha escolhido era a página seguinte. Enquanto roubava tempo para escrever contos, nunca lhe ocorreu pensar no que o tempo estaria a roubar-lhe a ele. Só pouco a pouco o aperfeiçoamento da sua vontade férrea de escritor começou a parecer-lhe a evasão da experiência, e o meio de libertar a imaginação para a exposição, revelação e invenção da vida lhe surgiu como a mais feroz forma de encarceramento. Pensava que tinha escolhido a intensificação de tudo, e afinal tinha escolhido a vida monástica e a clausura.»
Lição de Anatomia, Philip Roth

quinta-feira, junho 14

Meridiano 28


Sem a energia e o páthos do Arquipélago, sem a leveza e a simplicidade das crónicas de A Vida no Campo.

domingo, maio 20

Cartas e Recordações, Saul Bellow


«Não deves ser muito dura com o teu egoísmo. A Bíblia diz: «Eu, porém, sou um verme e não um homem.» Quando se trata de sermos duros connosco, a Bíblia está muito à nossa frente. Na verdade, os ateus não conseguem saber quão insignificantes são. Provavelmente, acontece o mesmo com os agnósticos. Só obtêm um adiamento»

Saul Bellow, Cartas e Recordações, Quetzal

quinta-feira, maio 3

Ressentiment



«Na sua presciente crítica à noção neoliberal da liberdade individual, Rousseau afirmara que os seres humanos não vivem para si próprios nem para o seu país numa sociedade de comércio onde o valor social se forma a partir do valor monetário. Vivem, sim, é para a satisfação da sua vaidade, ou amour propre: o desejo e a necessidade de assegurar o reconhecimento pelos outros, de ser-se estimado por eles tal como estimamos a nós próprios.
Mas, como salientou Kierkgaard, quem procura a liberdade individual deve fugir da prisão em que a sua própria reflexão o mantém e, a seguir, da vasta penitenciária construída pela reflexão dos seus associados. Nunca encontrará a liberdade nos espelhos confinantes, próprios das barracas de ilusões das feiras, do Facebook e do Twitter. Porque a vasta prisão das imagens sedutoras não cura as feridas que apetece coçar e coçamos, sem parar, do amour propre. Pelo contrário: mesmo o mais festivo dos espíritos de uma comunidade disfarça a competitividade e a inveja causadas pela exposição constante ao êxito e ao bem-estar por parte dos outros.
Como avisou Rousseau, o amour propre está condenado a ser perpetuamente insatisfeito. Demasiado banal e parasitário das opiniões inconstantes, sustenta na alma o desagrado de cada pessoa  por si própria e alimenta o ódio impotente pelos outros. O amour propre pode degenerar rapidamente numa tendência agressiva, onde o indivíduo só se sente reconhecido quando é preferido em vez dos outros e quando pode regozijar-se com a abjeção deles. Como concisamente disse Gore Vidal, Triunfar não chega. Os outros devem falhar.

O ressentimento pode parecer uma consequência natural da procura, à escala mundial. Da riqueza, do poder, do estatuto e da excitação estéril a que o capitalismo obriga: embora torne algumas pessoas ricas, o capitalismo expôs as diversas disparidades de receita e de oportunidades e deixou muitos a improvisarem desesperadamente máscaras alegres para usarem na selva social. Os meios de comunicação digitais melhoraram inquestionavelmente a tendência humana para a comparação constante da vida de cada um com as vidas dos que parecem ser os afortunados.
Mas o extremismo palpável do desejo, do discurso e da ação no mundo de hoje também provém de algo que é mais insidioso do que a desigualdade económica e a sociabilidade insocial. Tem a mesma origem das milhentas revoltas e rebeliões românticas da Europo do século XIX: a incompatibilidade entre as expectativas pessoais, aumentadas por uma rutura traumática com o passado e a realidade cruelmente indiferente da mudança vagarosa. Os seres humanos tinham sido libertados, em teoria, da estase da tradição para poderem empregar as suas capacidades, movimentarem-se livremente, escolherem as suas ocupações e vender e comprar de quem quisessem escolher. Mas a maioria descobriu que na prática, as noções do individualismo e de mobilidade social são irrealizáveis.
Continua a ser exigido muito, como antes, à população largamente juvenil no mundo. Aceitar as convenções da sociedade tradicional é ser-se menos do que um indivíduo. Rejeitá-las é chamar a si um peso intolerável em condições que, frequentemente, são mesmo desencorajadoras. Por isso, dois fenómenos que foram muito observados na sociedade europeia do século XVIII – a anomia, ou mal-estar do indivíduo sem amarras que só muito por alto é que se parece atender às normas sociais, e a violência anarquista – estão agora surpreendentemente muito generalizados. Seja na Índia, no Egito ou nos EUA, vemos hoje a mesma tendência dos desiludidos para se revoltarem e dos que se sentem confusos para procurarem refúgio na identidade coletiva e nas fantasias de uma nova comunidade.»

Pankaj Mishra, Tempo de Raiva, Temas e Debates

quarta-feira, abril 4

SAPIENS, Yuval Noah Harari. O animal que se tornou um deus

«Apesar das coisas espantosas que os humanos são capazes de fazer, continuamos sem ter a certeza dos nossos objectivos e parecemos estar mais descontentes do que nunca. Avançámos das canoas para as caravelas, para os barcos a vapor, para vaivéns espaciais - mas ninguém sabe para onde vamos. Estamos mais poderosos do que alguma vez estivemos, mas não fazemos a mínima ideia do que fazer com todo esse poder. Mas pior ainda é que os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses autoproclamados, com apenas as leis da física para nos fazerem companhia, não somos responsabilizados por ninguém. Estamos, assim, a espalhar o caos sobre os nossos companheiros animais e o ecossistema envolvente, em busca de pouco mais do que o nosso próprio conforto e divertimento, sem, no entanto, nos darmos por satisfeitos.
Existirá algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?»
Sapiens, Yuval Noah Harari. Elsinor

sexta-feira, fevereiro 16

Brilhante Yuval Noah Harari


Voraz e profundamente inquietante. Página a página, um livro que nos provoca uma vontade irresistível de partilhar tanta e tão diversa informação. Será este livro um produto da Inteligência Artificial?

«1. Será que os organismos vivos são apenas algoritmos e a vida não é mais do que processamento de dados?
2. O que tem mais valor, a inteligência ou a consciência?
3. O que acontecerá à sociedade, à política e à vida quotidiana quando os algoritmos não conscientes mas de inteligência superior nos conhecerem melhor do que a nós próprios?»
Homo Deus, Yuval Noah Harari

domingo, novembro 5

Nelson Rodrigues, por Ruy Castro


Biografia aclamada por críticos e leitores. Uma referência para todos os biógrafos. Pontuações máximas. Uma grande expectativa que não saiu gorada. Já li algumas biografias, mas nunca alguma que se assemelhasse.

«Ninguém é exatamente velho aos 49 anos, mas Nelson aparentava muito mais. Era lento de gestos, pesado, sedentário. Sua fala era uma espécie de mugido arrastado, a ponto de pensarem que vivia bêbado – ele, que nunca pusera uma gota de álcool na boca. Quando se empolgava, a voz ganhava outra tonalidade e as sílabas quase se atropelavam, mas isso era raro, porque Nelson parecia carregar uma tristeza perene. Quando se sentava para escrever, os ombros caíam e ele, que não era baixo, encolhia. A visão dos suspensórios também não ajudava. O que pareciam traços de beleza na juventude tinham sido devastados pelos abalos da saúde e pelo seu estilo de vida – o rosto magro e bem desenhado lembrava agora um buldogue. E Nelson era publicamente doente. Todos sabiam que era que era tuberculoso e ele próprio encarregava-se de promover sua úlcera como se ela fosse Maria Callas. Era cardíaco, precisava de se cuidar. Tinha uma enxaqueca permanente, comum a toda a sua família. E sofria também de hemorróidas.
Quando Lúcia revelou a história a suas amigas no Country e nos lugares sofisticados que frequentavam, elas não acreditaram. Como podia interessar-se por um homem tão mais velho, feio, doente, relaxado, certamente cheio de manias e, para piorar, casado – por mais inteligente e fascinante que fosse? O choque dos amigos de Nelson não foi menor.»
O Anjo Pornográfico, Ruy Castro

segunda-feira, junho 19

Três bolinhos de bacalhau


Março, 1900
"E um dia, ao saber Camilo cético, Camilo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de propósito procura-lo para lhe pregar Deus?
Era numa dessas tardes de Seide, de que o grande escritor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acácia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas, e sai do horror com blasfémias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepúsculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado numa argila cor de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo… O poeta tenta arranca-lo ao negrume, que o envolve: desenrola teorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez… Já o julga abalado e convertido, quando dessa figura, só osso e dor, saem enfim estas palavras irónicas:
- …Sim, sim, Junqueiro você convencia-me se eu não tivesse ainda no estômago, desde o almoço, três bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como três Voltaires."

Raúl Brandão, Memórias, Quetzal 

segunda-feira, maio 1

Cícero, por Robert Harris


«A sua (Molon) teoria  da Oratória era simples: não andar demasiado, manter a cabeça erguida, não se afastar do tema, fazê-los chorar, fazê-los rir e, uma vez conquistada a simpatia deles, sentar-se calmamente. - Nada seca com mais rapidez do que uma lágrima - dizia. Esta teoria estava mais de acordo com a maneira de ser de Cícero.»

«Devo falar-vos um pouco de Ático, cuja importância na vida de Cícero iria tornar-se extremamente importante. Já rico, recebera recentemente a herança de um tio, Quinto Cecílio, um dos mais detestados e misantropo prestamista de Roma: uma casa excelente no Quirinal e vinte milhões de sestércios em dinheiro; o facto de Ático ser a única pessoa que manteve relações razoáveis com aquele velho repulsivo até que ele morreu é bem revelador do carácter de Ático. Poderia haver quem visse ali oportunismo, mas acontecia que Ático, fiel aos seus princípios filosóficos, tinha por norma não se zangar com quem quer que fosse. Era um devoto seguidor dos ensinamentos de Epicuro («O prazer é o princípio e o fim da vida feliz»), embora convenha que se diga que não era um epicurista no sentida mais corrente, não procurava a luxúria, mas no sentimento mais verdadeiro, um seguidor a que os gregos chamam ataraxia, ou seja, a ausência de perturbação. Por conseguinte, evitava discussões e atitudes desagradáveis, aspirava apenas a tomar parte em discussões filosóficas com os seus amigos, de dia ou de noite. Achava que toda a humanidade devia perseguir objectivos semelhantes e sentia-se confundido por tal não acontecer. Era propenso a esquecer, como Cícero lhe recordava uma vez por outra, que nem toda a gente herdara um fortuna.»
Robert Harris, Imperium

domingo, abril 2

"Eu nasci milionário"


Mesmo para quem nada leu de John le Carré, como é o meu caso, vale bem a pena ler estas histórias da sua vida. Quanto mais não seja pelo Filho do Pai do Autor, um dos últimos capítulos:

«Demorei muito tempo a conseguir escrever sobre Ronnie, vigarista, fantasista, preso ocasional e meu pai.
(...) Aonde quer que Ronnie fosse, o imprevisível ia com ele. Estamos na mó de cima ou na de baixo? Podemos encher o depósito a fiado na estação de serviço da zona? Ele fugiu do país ou estacionará orgulhosamente o Bentley no caminho para casa esta noite? Ou esconde-lo-á no quintal, apagando as luzes da casa, verificando as portas e as janelas e falando em murmúrios ao telefone, se ele ainda não tiver sido desligado? Ou estará a desfrutar da segurança e do conforto de uma das suas esposas alternativas?
(...) Tensão? toda a vida de Ronnie foi passada a andar sobre a camada mais fina e escorregadia que se possa imaginar. (...) Encantava e persuadia com as suas fantasias, via-se um menino de ouro de Deus e deu cabo da vida de muitas pessoas.
Graham Green diz-nos que a infância é o saldo credor do escritor. Por essa medida, pelo menos, eu nasci milionário.»
O Túnel de Pombos, John Le Carré