segunda-feira, junho 19

Três bolinhos de bacalhau


Março, 1900
"E um dia, ao saber Camilo cético, Camilo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de propósito procura-lo para lhe pregar Deus?
Era numa dessas tardes de Seide, de que o grande escritor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acácia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas, e sai do horror com blasfémias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepúsculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado numa argila cor de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo… O poeta tenta arranca-lo ao negrume, que o envolve: desenrola teorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez… Já o julga abalado e convertido, quando dessa figura, só osso e dor, saem enfim estas palavras irónicas:
- …Sim, sim, Junqueiro você convencia-me se eu não tivesse ainda no estômago, desde o almoço, três bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como três Voltaires."

Raúl Brandão, Memórias, Quetzal 

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