domingo, janeiro 27

No meu tempo ...


Há um sentimento generalizado que se sente em todas as conversas de vivermos um tempo de uma inusitada violência, de uma perda de sensibilidade moral, de decadência dos códigos sociais e a viva impressão de que tudo se desmorona. Até os jovens fazem sistematicamente comparações com um tempo “paradisíaco” de que ouviram insistentemente falar. “No meu tempo…” é a expressão mais vulgar que inicia um guião com um final feliz.
Que tempo é este de que tanto falamos? Com que recordações sustentamos este passado?
Recordo Vidago nos finais dos anos sessenta: relembro os intermináveis jogos de futebol em que a primeira coisa que muitos dos meus amigos faziam era descalçarem os socos ou as botas e jogarmos, sem restrições, aquelas partidas magníficas, ou os jogos entre equipas rivais da distrital marcados pelas bengaladas ao ritmo dos golos e do copo do tinto, salpicados pelos gritos histéricos das mulheres; ao meu pai, ouvi contar os finais trágicos das “Chegas de bois barrosãs”, ou os terríveis ajustes de contas por “questões de água”; recordo, também, a alegria e o reconhecimento com que, por altura do Natal, os empregados da Empresa das Águas falavam do peixinho de bacalhau dado pelos patrões e também dos protestos de alguns amigos pelos inúmeros cântaros de água que tinham que carregar para as necessidades da casa; vem-me à memória os penosos regressos a casa daqueles, e eram muitos, que diariamente acabavam o dia na taberna da Tia Florinda e desafiavam a brancura cortante das geadas transmontanas; no verão, o ribeiro era a felicidade de todos, porque a piscina do hotel estava reservada aos que podiam ficar em dívida com a Menina Alicinha, a quem tiravam o chapéu respeitosamente - “respeito”, que se confundia quase sempre com submissão; com grande saudade, recordo o Parque de Vidago com os milhares de árvores que conhecíamos tão bem - o nosso mundo de aventuras; “Mundo de Aventuras” era, também, a nossa revista de quadradinhos que se desfazia de mão em mão e me punha lado a lado com os meus heróis – o Major Alvega, o Ene 3 e o rapidíssimo Kit Karson; recordo, ainda, com um “estranho” sorriso, as monstruosas contas de dividir que tornavam a escola num inferno, e, como poderia esquecer, o Ilídio que resistiu heroicamente a trinta e cinco reguadas pelos trinta e cinco erros, sem verter uma lágrima!
Eram tempos muito difíceis e todas as estatísticas sócio-económicas o confirmam.
Seriam tempos mais humanos?, mais justos?, mais solidários? Penso que não. Penso que o nosso passado é uma imagem filtrada pelos olhos da criança que fomos. Provavelmente apontamos o futuro com um passado reconstruído à imagem dos nossos sonhos. Há uma frase de Maurice Merleau-Ponty que diz: ”Nunca me recomporei da minha incomparável infância”. Comigo é um pouco o mesmo.


segunda-feira, janeiro 21

O discurso do Presidente Obama



 Na tradição americana, a tomada de posse de um presidente transformou-se também num espectáculo. Depurado e de bom gosto, é certo: bandeirinhas tricolores nas mãos de milhares de americanos, o Capitólio como fundo, o poder da palavra. Tudo começou pelo princípio. E o princípio é, num país civilizado, jurar preservar, proteger e defender a Constituição. E depois um discurso todo construído na primeira pessoa do plural – nós, o povo americano. O discurso do presidente americano foi claro, convincente, brilhante. A retórica de Obama, emotiva e num aparente improviso, mostrou que valores como liberdade, democracia e solidariedade não perderam validade e continuam a ser a única saída possível.
Sorte a deles, e a nossa também.

sábado, janeiro 19

As Idades do Mar, na Fundação



Até 27 de Janeiro, Na FCG, As Idades do Mar: obras de Claude Monet, Courbet, Friedrich e muitos mais e, sobretudo, as fabulosas obras, Naufrágio de Um Cargueiro, de Turner (173x245cm) e o pequeníssimo óleo de Ingres, Vénus Anadiómena.
Também na Gulbenkian, ilustrações de bom gosto para Um chá para Alice.


quinta-feira, janeiro 17

Eusébio Macário



Adicionar ao cesto é uma tentação, é fácil, os descontos são maiores e os portes gratuitos. Pagar com o cartão de crédito torna o valor perigosamente simbólico. O tempo estimado de entrega suportar-se-ia não fosse a fnac falhar todos os prazos previstos. A espera fez-me saltar de livro em livro até esta dedicatória:

“Minha querida amiga
Perguntaste-me se um velho escritor de antigas novelas poderia escrever, segundo os processos novos, um romance com todos os “tiques” do estilo realista. Respondi temerariamente que sim, e tu apostaste que não. Venho depositar no teu regaço o romance, e na tua mão o beijo da aposta que perdi.” 
Camilo Castelo Branco

E fiquei por Eusébio Macário e a Corja, divertido, recordando expressões e um vocabulário que permaneceram até à minha infância. 

“- Bebo à saúde do gentil fruto do inteligente e assaz conhecido farmacêutico, o senhor Eusébio Macário, meu amigo e senhor. Eu já sabia por experiência de enfermo, que o benemérito filho de Hipócrates manipulava no seu laboratório remédios eficazes para dores; mas agora acabo de ver e saber que também os sabe manipular para refrigério de amores. O deus Esculápio abraça-se com Cupido. Eu faço votos por que o nosso ilustre amigo, o senhor comendador Bento José Pereira Montalegre, não gaste da botica do senhor Eusébio Macário senão a linda filha, a droga mais doce, mais balsâmica que ele produziu, para a qual vejo que todos olham com inveja, excepto aquele a quem tenho a honra de saudar, o ilustríssimo comendador Montalegre, unindo-o no brinde àquela que já está pelo coração, a esbelta Custodinha!”  

sexta-feira, janeiro 11

Quem nos escolheu para cobaias?




Porque tentam "reformar" (destruir, nesta visão ultraliberal pérfida e oportunista) o Estado quando os gastos em percentagem do PIB estão bem abaixo das médias da zona euro? Porque omitem sistematicamente e deliberadamente da discussão as rendas das PPP, os empréstimos escandalosos aos Bancos, os impostos pagos pelos lucros das aplicações financeiras, a fuga e evasão fiscais, etc, etc? Porque continuam a sonhar com a refundação de um país partindo do caos? Quem nos escolheu para cobaias?

segunda-feira, janeiro 7

domingo, janeiro 6

Fui a Alvalade


FIFA 2012


À minha frente, pai e dois filhos adolescentes, gémeos, um de cada lado numa simetria perfeita. O da esquerda jogou futebol todo o tempo no seu smartphone; o da direita, de smartphone também, procurou incessantemente algo que o distraísse; ao meio, o pai, alto, tal como os filhos, cabelo cuidado, camisa engomada de colarinhos rijos apertados por uma gravata a condizer, sobretudo comprido de corte clássico - esteve frio em Alvalade. Durante todo o tempo mantiveram a posição correcta na cadeira, costas bem apoiadas e pés bem assentes no chão. Se os rapazes tinham os cachecóis enrolados ao pescoço, o do pai esteve sempre nas mãos. Em movimentos quase imperceptíveis e durante todo o jogo aquelas mãos não pararam de dobrar, puxar, torcer, enrolar, amarrotar, esmagar aquele cachecol verde desfiado.

sexta-feira, janeiro 4

Mel


As primeiras oitenta páginas derretem-se na boca, depois ganham consistência numa trama de relações humanas, de verdade e mentira, da relação do estado com os cidadãos até aos fantasmas da Guerra Fria. No final, uma magnífica e surpreendente carta.

"Chamo-me Serena Frome (rima com plume) e há quase quarenta anos fui enviada numa missão secreta para os serviços segurança britânicos. Não regressei incólume. Dezoito meses depois de ingressar fui despedida, tendo caído em desgraça e destruído o meu amante, embora não reste dúvida de que ele teve um papel activo na sua ruína."

terça-feira, janeiro 1

Calendários




No dia 31 de cada Dezembro os votos de bom ano sucedem-se, os desejos e promessas de um ano melhor são um ritual. Com a idade, tornamo-nos mais cépticos e repetimos sem convicção hábitos antigos. Mas o que realmente se altera na passagem deste dia para o primeiro de Janeiro, para lá dos novos aumentos que o início do ano estupidamente legitima, é o calendário. Gosto de calendários. Gosto de um calendário graficamente bem feito. Gosto da efemeridade mensal das imagens. Gosto dos 365 dias à distância da minha mão e gosto da implícita inevitabilidade de os viver.