segunda-feira, junho 19

Três bolinhos de bacalhau


Março, 1900
"E um dia, ao saber Camilo cético, Camilo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de propósito procura-lo para lhe pregar Deus?
Era numa dessas tardes de Seide, de que o grande escritor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acácia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas, e sai do horror com blasfémias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepúsculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado numa argila cor de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo… O poeta tenta arranca-lo ao negrume, que o envolve: desenrola teorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez… Já o julga abalado e convertido, quando dessa figura, só osso e dor, saem enfim estas palavras irónicas:
- …Sim, sim, Junqueiro você convencia-me se eu não tivesse ainda no estômago, desde o almoço, três bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como três Voltaires."

Raúl Brandão, Memórias, Quetzal 

terça-feira, junho 13

Lamento Sertanejo


Há muitas interpretações desta composição de Dominguinhos / Gilberto Gil, mas nenhuma como este voluptuoso e lânguido lamento de Mayra Andrade.


Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado.

Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo.
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo

terça-feira, junho 6

Três dias em Londres



É difícil descrever estes três dias em Londres. Fico-me apenas por sensações, observações condicionadas e, certamente, por generalizações precipitadas. Retive: do arejado aeroporto de Heathrow ao claustrofóbico metro; a irreversibilidade de uma enorme metrópole multiétnica e a beleza surpreendente de tantos, fruto de cruzamentos genéticos; os milhares de turistas chineses padronizados e a extravagância diferenciadora dos jovens londrinos; os bairros históricos com a sua vida tão peculiar, a contrastar com a gélida e deselegante City de jovens de fato cinzento; o bulício caótico em larga escala e a certeza de um fim de tarde retemperador pelos pubs ou pelos parques; o enorme património histórico que lhes estrutura a civilidade; e no sábado terrorista, o regozijo com a vitória do Real de Ronaldo quebrado abruptamente pelo som dos helicópteros e das sirenes.