Semana sim semana não, percorríamos 48 quilómetros para
visitar a família na aldeia de Constantim. O meu pai nasceu lá, mas toda a sua
infância e juventude passara-as por terras da raia à volta das saias da maestra Felisbela, minha avó. Por morte
prematura de um pai de outras terras, ficou exclusivo da família materna, gente
abastada - os Faceiras, e da aldeia que o mimou e tratou por Luizinho. Já a
minha mãe era a filha mais nova de uma família da terra que partiu para o Brasil
à procura de fortuna. Quando regressaram do Rio de Janeiro, logo após o
nascimento de minha mãe, trocaram os dinheiros poupados por casas e pelas
melhores terras da aldeia. Eram cinco os filhos: a Justina, a mais velha e por
quem a minha mãe tinha uma adoração especial, o João, dono da venda e do café da
terra, o Toninho, com táxi em Vila Real, o Zeca e a Lurdes, minha mãe, a mais
bela e formosa da terra, nascida em tempos de abundância familiar. Todos eles
casaram. Todos eles tiveram muitos filhos, o ti Zeca não.
As tardes de domingo eram passadas na casa e na venda do meu
tio João. Homem discreto e afável. A azáfama da venda e do café, o ritmo das
primas que subiam e desciam com tarefas bem definidas e a atenção afetuosa que
nos dedicavam tornavam estas tardes diferentes. Toda a aldeia rodava à volta da
venda do meu tio, que prestava todos os serviços. Aos domingos, os homens
ocupavam literalmente parte da estrada nacional à frente do café e por lá
gozavam a única tarde de ócio de que dispunham. Foi nesse percurso, já rapaz e
acompanhando minha mãe, que nos cruzámos com o tio Zeca. Abraço caloroso e
familiar entre os dois e hesitação e estupefação minha perante o desconhecido. Cumprimentei-o
perplexo e, enquanto conversavam, reparei nas feições familiares daquele rosto.
Um rosto que não me era completamente estranho. Desde aí, vi-o algumas vezes
mais. Sempre discreto, camuflado pelos homens da terra no café do seu irmão
João. Por vezes, apanhava-o a perscrutar-nos com um olhar de quem
procura pormenores do seu desenho genético nos rostos dos filhos da sua irmã
Lurdes; mais de uma vez, vi-o a pedir a bênção ao pai, David, meu avô; uma ou
outra vez, a cumprir o ritual na igreja onde era sacristão, diluído na exuberante talha
dourada do altar, absorto de tudo o resto e sempre com o mesmo semblante. Encontrei-o
também numa fotografia em casa do meu avô que tantas vezes vira e que não me
despertara a mínima curiosidade. E lá estava o ti Zeca ainda menino, vestido
como um adulto, quase imperceptível, apagado pelos irmãos mais velhos e pela frescura das
irmãs. Como conseguia este dom da invisibilidade? Quem era este homem tímido que
ouvia muito e falava tão pouco, que no meio da gente da terra se mostrava longe das conversas,
que demonstrava uma serenidade e uma bonomia constantes e que aparentava dar-se
bem com a solidão?
A minha mãe dizia que era uma jóia de rapaz e que sempre
fora assim - metido em si, ensimesmado. E era este ser assim que o afastava dos outros. Herdou o seu
quinhão na altura das partilhas e com ele governara-se. O seu
universo era a mulher, os campos, a igreja. Bastavam-lhe.Talvez tenha escolhido a obediência,
o silêncio e a humildade e se tenha afastado deliberadamente dos prazeres
mundanos. Este afastamento da família alargada resguardavam-no evidentemente das tensões
e das questiúnculas naturais de quem está próximo, dos favores, da
obrigatoriedade da retribuição, da formalidade da boa educação. Mas também o
afastava da cumplicidade, do carinho e do sentimento de pertença.
Talvez fosse deliberada a sua escolha de uma liberdade mais plena. Talvez, pelo seu feitio, tivesse sido empurrado naturalmente para ela. Provavelmente, esta maneira de ser livre é, quase sempre, estar só.
Talvez fosse deliberada a sua escolha de uma liberdade mais plena. Talvez, pelo seu feitio, tivesse sido empurrado naturalmente para ela. Provavelmente, esta maneira de ser livre é, quase sempre, estar só.
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