Durante meses a fio, na hora de dormir, um pequeno livro, a História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar, foi o preferido das minhas filhas. Não sei quantas vezes contei esta
história do chileno Luis Sepúlveda. A repetição, noite após noite, levava-me a redesenhar partes do conto, a dar uma dimensão diferente a certas personagens, a abreviar
certas passagens. Mas nunca consegui alterar, sem a imediata correção e um pequeno ralhete, as etapas fundamentais da promessa do gordo gato preto,
Zorbas. Quando a gaivota finalmente voava e a luz se apagava, a Inês, a mais
nova, pedia-me para ficar um pouco mais. Deitava-me transversalmente aos pés dela
e esperava que adormecesse. Escutava, imóvel, quase em apneia, que a respiração
suavíssima se tornasse profunda, que o corpo se soltasse. Por vezes, quando em
movimentos muito lentos antecipava a saída, a Inês intersectava-me com um
pedido sussurrado: pai …. E eu voltava à posição inicial. Imóvel de novo. Naquela quietude, aprendi a interpretar todos os sinais vindos daqueles corpos. No silêncio, a transportar-me para um plano paralelo ao da realidade quotidiana.
Vinte anos depois, na sua casa, voltei a ficar ao lado dela
à espera que adormecesse e recuperasse a energia que a faz voar tão bem. Imóvel,
com os sons da cidade esquecidos, escutei durante muito tempo os mesmos sinais.
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