sábado, dezembro 27
sexta-feira, novembro 14
domingo, outubro 26
O Legado de Humboldt, Saul Bellow
Saul Bellow chega livro após livro à essência das coisas.
segunda-feira, outubro 20
quinta-feira, agosto 28
Para Martin Amis, o grande romance da literatura americana. É verdade, não vale a pena procurar mais.
"O corpo de Stella, com o cheiro morno de mulher, estava coberto de água, começando a partir de uma linha tranquila acima dos seios. ... Sentei-me com o roupão pendurado no ombro e senti-me extremamente em paz. ... Eu sentia-me instalado e descontraído, o meu peito livre e os meus dedos abertos e confortáveis. E é aí que está a coisa. É preciso um momento como este para percebermos como o nosso coração anda angustiado e, além disso, todo aquele tempo em que pensávamos estar a vaguear ociosamente, estava a ser realizado um trabalho duríssimo. Sem nos apercebermos, estávamos a esforçar-nos duramente, cavando e escavando, abrindo minas e túneis, levantando, empurrando e carregando pedras, trabalhando, trabalhando, trabalhando, trabalhando, arfando, transportando, içando. E nada disto pode ser visto do lado de fora. É tudo feito internamente. Isto acontece porque nos sentimos impotentes e incapazes de obter justiça ou resposta, e, então, dentro de nós, trabalhamos, guerreamos e combatemos, ajustamos contas, recordamos insultos, brigamos, reagimos, negamos, palramos, denunciamos, triunfamos, enganamos, superamos, vingamo-nos, choramos, persistimos, absolvemos, morremos, ressuscitamos. E fazemos isto tudo sozinhos! Onde é que está toda a gente? Dentro do nosso peito e da nossa pele, o elenco inteiro."
Saul Bellow, As Aventuras de Augie March, Quetzal
sábado, agosto 9
sábado, agosto 2
domingo, julho 27
terça-feira, julho 22
Morrem Mais de Mágoa, Saul Bellow
domingo, julho 13
Terra, Olga Roriz
quarta-feira, julho 9
82. Quando a derrota verdadeiramente doeu.
A última selecção brasileira que não precisava de rezas nem mezinhas nem milagres. Simular uma falta era dar tempo ao adversário e um pontapé para o ar uma opção vergonhosa.
segunda-feira, julho 7
sexta-feira, julho 4
Técnica
Se técnica se define como eficácia com o menor esforço,
aliás a própria definição é um primor de síntese e de eficácia compreensiva, os alemães possuem, desde há muitos anos, o futebol em que a técnica individual (não no sentido circense e comummente classificada como tal) melhor se expressa
e, como não podia deixar de ser, ao serviço da equipa e das vitórias.
Manifesta-se pela qualidade da recepção, do passe e do remate, pelo predomínio da objectividade,
da linha recta e pela elevada quantidade de
jogadores envolvidos nas acções - a matemática assim o exige.
Mas não é com este modelo minimalista de jogo que se fazem
os espectáculos. Os grandes espectáculos de futebol fazem-se com a emoção da linha curva,
do drible, do Olé, do rodriguinho, do erro, da simulação, do individualismo, das estrelas narcisistas, em suma: da teatralidade.
terça-feira, junho 24
Irresistível
… “Talvez tenha feito isso ou talvez não; alguma coisa fez,
isso é certo – mas quem é capaz de distinguir o que é do que não é quando
confrontado com semelhante mestra da falsidade? As cenas patéticas que ela
improvisava! A pura hipérbole de tudo o que imaginava! O poder de autossugestão
dos embustes que urdia! A convicção com que desenhava aquelas caricaturas!
Não vale a pena fingir que não contribuí para lhe alimentar
o talento. Aquela que a princípio não terá passado de uma mentalidade mendaz e
provinciana, tentada pela possibilidade de caçar uma boa presa, transformou-se,
não pela fraqueza mas pela força da minha resistência, numa coisa maravilhosa e
demencial, numa imaginação lunática e inebriante que – pondo de parte tudo o
resto – reduzia ao ridículo absoluto as minhas convencionais conceções
universitárias de verosimilhança na ficção e todas aquelas elegantes fórmulas
jamesianas que tinha interiorizado sobre proporção, vias indiretas e tato.
Levou tempo e custou sangue, e a verdade é que só quando comecei a escrever O Complexo de Portnoy consegui deitar cá
para fora alguma coisa que se parecesse com o talento para a ousadia
estonteante que ela tinha. Não há dúvida de que ela foi o meu pior inimigo de
sempre mas, tenho de reconhecer, foi também o mais espantoso de todos os meus
professores de escrita criativa, especialista por excelência em estética de ficção
extremista.
Leitor, casei-me com ela.” Philip Roth, Os FactosNo Público, aqui e aqui
sexta-feira, junho 20
quarta-feira, junho 18
Um longo passeio pelos greens (4)
O som dos spikes metálicos dos sapatos no
granito das escadas íngremes do Pavilhão marcava a inquietude e a ansiedade de
um tee time cada vez mais próximo. Mas tudo começara no dia
anterior. Na limpeza meticulosa dos ferros Wilson que a prima
da américa oferecera, na escolha da bola ainda embrulhada em celofane e
reservada para a ocasião, na verificação da quantidade e do tamanho dos tees,
no esticar e dobrar da luva encarquilhada, no toque no quarto de dólar
americano que marcaria a bola nos greens. O polo azul Fred Perry e
as calças de cor clara, já vincados pela mãe para lá das recomendações, e o
brilho puxado nos sapatos fechavam, com o grau de discrição que a timidez exigia, mas também com o cuidado subtil de não passar despercebida, uma
composição elegante.
E depois a noite longa, demasiado longa, de olhos
apertados, a volta delineada nas voltas da cama, pancada a pancada, de uma
regularidade e perfeição impossíveis, e o tempo que nunca mais passava,
irrequieto e enervante, que o atirava para o relógio vezes sem conta. E
quando o cansaço parecia vencer, a manhã precipitava-se. O alvoroço perturbava
o silêncio de domingo e a surpresa disfarçada da mãe recordava-lhe as horas que
ainda faltavam para o torneio, “Não é só à tarde?” Sim, era.
O Pavilhão, não sei porque lhe chamávamos assim, era
uma antiga fonte de águas termais adaptada a clubhouse do
campo de Golfe de Vidago. Entre o pavilhão e o tee do buraco 1
passava a avenida que ligava a fonte termal nº2 à fonte Salus, na extremidade
do parque. Esta longa e longilínea avenida, apertada por plátanos, de
saibro meticulosamente varrido, limitava, à direita, todo o percurso do primeiro
buraco e servia de verdadeiro teste aos nervos de qualquer jogador. Mas era no
perímetro do primeiro tee, em frente ao Pavilhão, que o espetáculo decorria.
Tarde de domingo, bancos de madeira vermelhos vivos reservados desde cedo pela
gente da terra que por ali ficava. Conhecedora dos meandros deste jogo elitista
contrastava com a perplexidade dos aquistas que por ali passavam e que,
surpreendidos pela estranha coreografia no relvado imaculado, paravam por
breves momentos. A azáfama de jogadores e as correrias dos caddies até
ao parque de estacionamento na disputa dos golfistas mais generosos rematavam o
ambiente de festa. O afã que precedia as saídas das diversas formações de
jogadores repetia-se, e o burburinho só diminuía pelo avançar do jogador
chamado pela voz do starter e pelos primeiros movimentos de
ensaio que precediam a posição definitiva.
Mas quando a nossa vez se aproxima já pouco se ouve e pouco
se vê. A barriga aperta ainda mais, o tempo
escoa-se. Quando avançamos para as marcas de saída, aqueles dez
ou onze passos, aparentemente resolutos, deixam-nos sós num palco verde
constrangedor. E então, orquestrados pelo código de um jogo que exige silêncio
quando alguém se posiciona, toda aquela gente para e todos se centram em nós. É sempre nesta altura que alguém tosse, alguém se aproxima ainda, alguém diz
uma palavra mais, alguém continua a andar no saibro da avenida para a fonte, e
é nesse momento que a voz se faz ouvir de novo sobre as outras distraídas e
exige que tudo pare. E é essa voz que perturba ainda mais, e todos param e sabemos que todos, sem exceção, se viraram para nós e esperam. E é nessa
altura que se ouve o bater do coração e queremos sair dali. E tudo se precipita
de uma forma mecânica: bola em cima do tee, três ou quatro passos atrás, movimentos de
alongamento do corpo com swings ritmados num crescendo de vigor, memorização de
um ponto para o alinhamento, regresso à posição definitiva, aproximação do
ferro 2, ligeira correção da altura da bola, verificação da posição dos pés e mãos, olhar rápido para o objectivo, rosto apertado, olhos fixos na bola. O movimento de backswing,
que devia ser mais lento e amplo, acelera para lá das rotinas que o treino
parecia ter consolidado e desmorona a elegância necessária ao movimento. A correção instintiva do movimento transforma o final do voo da bola, vergonhosamente curta
para um adolescente, numa curva para a direita roçando os plátanos da avenida.
O embaraço espelha-se imediatamente no rosto após o som da pancada e alastra à gente mais velha da terra que não precisa de se levantar.
Mas é de lá que vem o toque no ombro ou a frase reconfortante, “Força, Ni!”.
Mas é de lá que vem o toque no ombro ou a frase reconfortante, “Força, Ni!”.
terça-feira, junho 17
sábado, junho 7
Não me lembro
“Dormi tão bem, … é
disto que eu preciso, ter horas para dormir.
E tu? Conseguiste descansar? Olha, tens que me contar o finzinho do
filme, estava desconcertada (piscar de olho) e agora que estava a pensar se ela tinha casado com ele … não me lembro …
Bem, vou arranjar-me. Beijo.”
sábado, maio 24
Um longo passeio pelos greens (3)
Durante duas semanas, numa pequena vila
transmontana, o “golf”, esse desporto tão elitista e desconhecido para o
comum cidadão português, relegava o futebol de Eusébio e Yazalde para um plano
secundário. Em Setembro, os Torneios de Golf de Vidago representavam o culminar
de uma preparação que se tinha iniciado aos primeiros dias primaveris. Eram
quinze dias ininterruptos de golfe, num campo meticulosamente preparado e que
aos primeiros sinais de Outono se transformava num local encantatório. Quinze
dias de confronto com adversários vindos de longe. Quinze dias de ajuste e
nivelamento sociais. Quinze dias que transformavam a pequena vila num pequeno
mundo cosmopolita, de etiqueta, de silêncios, de exclamações. Quinze dias em
que as conversas no Café se enchiam de anglicismos, de números, de decepções,
de espantos, de regozijos, de promessas. Quinze dias que se esgotavam
rapidamente e atiravam abruptamente o golfe para uma letargia potenciadora.
terça-feira, maio 13
Chá de Menta com Mel
Na Wikipédia: as mentas são plantas herbáceas vivazes. Em
suas propriedades medicinais, é usada como anti-séptico, aromática, digestivo,
estomáquica e expectorante.
domingo, maio 11
Talvez o ato de egoísmo mais iluminado alguma vez registado
Otto Dix
“Os homens do dinheiro norte-americanos discutiram então de forma exaustiva um novo sistema financeiro internacional para o capitalismo e criaram o Plano Marshal, talvez o ato de egoísmo mais iluminado alguma vez registado. Se os europeus tivessem dinheiro no bolso, consideraram os norte-americanos, podiam comprar comida aos EUA, importar dos EUA maquinaria para reconstruir a sua indústria e – o mais importante – evitar o voto nos comunistas; por isso os EUA limitaram-se a dar-lhes 13,5 mil milhões de dólares, um vinte avos de toda a sua produção em 1948.” Ian Morris, O Domínio do Ocidente, p.532.
sábado, maio 10
sexta-feira, maio 9
domingo, abril 27
Vasco Graça Moura, Auto-retrato com a musa
1.
vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.
sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).
ia a passar fumando
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,
palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistura
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistura
e se entrevê no espelho,
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo. e fico
feito de tinta e feio.
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo. e fico
feito de tinta e feio.
2.
quem amo o que é que pode
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guardá-lo num livro,
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guardá-lo num livro,
nem rasgá-lo ou queimá-lo,
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo
não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas me confundo,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas me confundo,
amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmigianino,
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmigianino,
nem espelho convexo,
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.
3.
quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço
tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,
nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio.
quem amo tem feições
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio.
quem amo tem feições
de uma beleza grave
e música na alma.
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.
e música na alma.
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.
é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça. assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.
pousando no meu ombro
sua cabeça. assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.
segunda-feira, abril 21
Um longo passeio pelos greens (2)
Mas é com o campo que o verdadeiro desafio se faz, qualquer
jogador de golfe sabe isso.
Experimentem jogar em Vidago, no outono - a verdadeira
essência da natureza, de uma natureza que se apresenta como
emanação de um deus. Mas não se deixem iludir: toda aquela beleza, aparentemente espontânea, não passa de
um logro. Por debaixo de toda aquela harmonia está o dedo perverso de
um deus qualquer medieval - exigente, inclemente, quase sempre devastador,
raras vezes acolhedor. Quem o desenhou fê-lo para nos seduzir e depois, creio
cada vez mais, para nos corromper e para nos vexar.
Coloquemo-nos de um ponto de vista exterior, nos olhos do
criador. Desçamos o monte íngreme de terra pobre e agreste, feito de fragas e
penedos de granito, coberto de giesta, urze, rosmaninho, estevas, tojos,
pinheiros, carrascos e cedros, e quando o monte descansa a paleta de cores
altera-se radicalmente, incendeia-se: os verdes sem estação da montanha dão lugar
a um vale de paleta rica em tons flamejantes açucarados. E a escala de tudo aquilo! Se quisermos registar na nossa
memória todo esplendor de cor, de texturas e luz, a altura e robustez dos
plátanos e dos cedros, os áceres, os belíssimos tons amarelos dos castanheiros-da-índia,
os amarelos, laranjas, vermelhos e castanhos dos frondosos carvalhos-americanos,
os bordos nas terras ricas com o seu luminoso amarelo-ouro com notas
avermelhadas, os longilíneos e trémulos choupos-negros com o seu amarelo-ocre, os
freixos, amieiros e salgueiros que ladeiam o ribeiro que percorre todo o vale,
a perfeição das tílias, a desmesura da sequoia-vermelha - que viverá por mil anos,
o chão juncado de folhas que apertam o relvado, reduziremos o homem a uma infinita e insignificante pequenez.
E como se tudo isso não bastasse, o que nos toca mais no meio
daquilo tudo é o silêncio. O silêncio absoluto. E a dimensão do absoluto
mede-se paradoxalmente pela nitidez dos trinados dos rouxinóis, pelo canto limpo e repetido
dos tordos, pelo restolhar dos melros nas folhas secas. E é esse silêncio que
nos comove, e é esse silêncio que nos coloca num lugar indeterminado, num vazio
inquietante difícil de detalhar e de compreender.
Perante esta explosão simultânea de violência e de tranquilidade, o que fazem os jogadores de golfe?
Cegos, perseguem uma bola.
sábado, abril 19
segunda-feira, abril 14
Regresso às Belas-Artes.
(7.ª EDIÇÃO – GAB-A GALERIAS ABERTAS DAS BELAS-ARTES)
O amarelo forte fica-lhe bem. Na entrada, procurei a escultura do Laocoonte e percebi de imediato que pouco mudara: os magníficos gessos expostos continuam estranhamente mal conservados. O acesso aos pisos superiores continua a fazer-se, à direita e à esquerda, por dois lances de escadas largas e polidas pelos anos e, como todos os alunos da Escola durante tantas gerações, também a Rita optou pelo lado esquerdo. Percorri os longos corredores de cicerone entrando nas salas de pintura, de desenho, de modelo e pareceram-me exactamente iguais: os mesmos estiradores, o chão e as paredes marcados pela tinta, as janelas claras e profundas viradas a sul, as paredes larguíssimas do convento, os trabalhos expostos aparentemente acabados de fazer. Agradou-me ver que a figura humana continua a ser a base de trabalho de formação.Recordei-me deste "recorte" de José Cardoso Pires:
“ Em arte só se pode esquecer, sabendo; só assim se torna possível corromper o discurso para o renovar e lhe dar dimensões mais vivas. Assim fizeram os grandes mestres pintores dos nossos dias. Corromperam porque conheciam a gramática da imagem para a enriquecer com novas leituras e com novas confrontações com o real.”
sexta-feira, abril 11
Um longo passeio pelos greens (1)
Dificilmente me seguirão. Ninguém suporta conversas sobre
golfe e golfistas. Como se isso não bastasse, vou usar termos específicos da
modalidade que, provavelmente, nada vos dirão. Mas também não dizem muito.
Quando o itálico enviesar a palavra não liguem e pensem que tudo se resume a se
bateu ou não bateu na bola. Passem à frente. Evitarei juntar aos anglicismos os palavrões que os precedem ou que lhes sucedem. São estes que classificam com
acuidade a qualidade da pancada. Não há só dois tipos de pancadas, tal como
sugeri, mas uma infinidade delas e, por estranho que vos pareça, as perfeitas são
raras, dificilmente as vemos. Melhor, ouvimos, porque o som do contacto com a
bola é o primeiro sinal, e o mais fiável, para atestar a qualidade do bom shot. O som não engana. O contacto perfeito provoca no jogador uma sensação única de plenitude e no adversário a exclamação genuína de reconhecimento ou, por vezes, o elogio forçado, a
dissimulação, o silêncio invejoso. Estranha estas palavras quem pensa que o golf (repararam no itálico e a perda do é)
é um desporto cortês de uma elite aristocrática de sapatos de franja brancos
e calças aos quadrados seguidos por rapazinhos enfezados que carregam sacos
enormes cheios de ferros de todos os feitios e incapaz de tais sentimentos
mesquinhos. Afastem essa ideia. Esse mundo, se existiu, acabou há muito. A
roupa e os acessórios exclusivos foram substituídos pelas plebeias nike e adidas que tornaram o golfe num circo de cores que só tem paralelo
no jogging de domingo à beira-mar; pensam,
ainda assim, que os grupos de afortunados que se passeiam nos greens a falar de negócios e a matar o tempo
que lhes sobra são alheios à competição; acham, seguramente, que não
encontram ao longo das quatro horas do percurso um gesto que os comprometa, uma
palavra que os vulgarize, uma atitude que os denuncie. Nada disso, simples
mortais. Batem-se tenazmente. São capazes de tudo: das desculpas mais torpes, dos palavrões mais
rascas, dos olhares mais inquisitivos, das atitudes mais vis. Se lerem as
regras que regulam este longevo desporto e a minúcia das situações que prevê,
percebem que a tentação para contornar as normas está latente neste jogo do
demo. Fazem tudo por um bom cartão.
Mas há os que o interpretam
como um jogo para Homens. Impolutos. Um jogo de deuses. Uma luta inglória e sem
fim contra nós próprios e contra o campo. E aí não há lugar para a trapaça. Só
há lugar para a desilusão, para o silêncio, para o abanar de cabeça, para o
palavrão surdo. E também para a catarse.
Claro que não há os bons e os
vilãos. Uns e outros. Os jogadores são uns e outros. Mas todos têm duas
características em comum, não estranhem: a perseverança e a humildade –
conservam-se firmes, não desistem e são, também, os primeiros a reconhecerem as suas limitações, os seus defeitos,
as suas incapacidades. E isso é, bem sabem, difícil de aceitar e, sobretudo,
admitir perante os outros - e é aqui que surge o embuste, a
simulação, a vaidade.
sexta-feira, abril 4
Gauguin teria gostado
O maior elogio que se pode fazer a uma obra de arte, fê-lo o operário reformado italiano ao manter durante 40 anos uma pintura pelo "valor facial". Pendurá-lo na cozinha foi, seguramente, o melhor local para este Fruits sur une table. Gauguin teria aprovado.
Agora que o levaram, como ficará a cozinha? Pintará
o rectângulo que sobra na parede? Com que se pinta a ausência súbita do que nos
acompanhou durante tanto tempo?
I Loves you Porgy, Nina Simone
Neste inverno que não acaba mais, com esta chuva sem fim e um sol que nos abandonou, sabe bem ouvir esta música de George Gerschwin cantada pela imprevisível Nina Simone, e sugerida pelo MEC em Se As Canções Falassem.
terça-feira, março 25
Periferia miserável
Também eu tenho uma pergunta a fazer sobre a Crimeia.
Após o voto pró-russo no referendo da Crimeia e perante as câmaras da RTP, um militar reformado de origem russa resumia assim o seu
patriotismo: “Agora a minha pensão há de crescer três vezes.”
O que propõe o Ocidente depois de ter abandonado
estes povos a uma periferia miserável? (Repararam na subtileza e na
familiaridade de “periferia miserável”)
A resposta está hoje, dia 28/3, no Público: o FMI propõe ao governo ucraniano um "pacote de austeridade muito impopular, complexo, com reformas duras,"... "que foi uma das razões que levou o Presidente Ianukovich a virar as costas à União Europeia e assinar um acordo aduaneiro com a Rússia, em Dezembro passado.
A resposta está hoje, dia 28/3, no Público: o FMI propõe ao governo ucraniano um "pacote de austeridade muito impopular, complexo, com reformas duras,"... "que foi uma das razões que levou o Presidente Ianukovich a virar as costas à União Europeia e assinar um acordo aduaneiro com a Rússia, em Dezembro passado.
segunda-feira, março 17
“Twinkling star”
Já todos sentimos aquele súbito
tremor na vista e o frémito que percorre a espinha, aquele desconforto, aquela
agitação interior perante o inesperado, perante o belo. Ou, como neste caso, perante o feio.
Apareceu de vestido de cetim branco,
rodado, pelo joelho. A pele clara das costas, os ombros e os braços nus ganhavam
um protagonismo inusitado. Preso do pescoço até a uma cintura subida, um
emaranhado de pregas, franzidos e acessórios dourados diluíam por completo uns
seios firmes e um corpo helénico. O trabalho com os cabelos foi devastador. O cabelo
liso deu lugar a um elaborado e confrangedor penteado de madeixas e caracóis. Os
brincos, arrecadas da avó de filigrana fina, baloiçavam incessantemente. E não
soube parar, os olhos retocados a tons suaves e os lábios pintados desfiguraram
irremediavelmente um rosto cândido. Para acentuar o desastre da composição, escolheu
uns sapatos claros de salto alto a condizer.
Enquanto caminhava ao seu
encontro, o jovem professor viu que Dalva transformara-se numa boneca
espanhola desarticulada.
Viu-o desconcertar-se, pestanejar, entreabrir os lábios para não dizer nada. Ficou pálido.
«Vamos», balbuciou.
Emudeceu.
Os dias eram demasiado quentes e
secos para os primeiros dias de junho. David passava pontualmente às seis e
meia de regresso à casa alugada por um grupo de professores. Foi colocado a
meio do ano letivo após ter terminado o serviço militar obrigatório. Alto,
cabelo curto, de tez morena - reflexo da vida militar, David fora convidado a
partilhar a casa com outros sete professores. A “casa dos professores”, uma
verdadeira república nas palavras do padre da paróquia, era local de pouco
sossego: saídas pela noite dentro, folias e folguedos a desoras, jantares
prolongados no terraço com os muitos amigos que por lá pernoitavam. Não demorou
muito tempo para que a casa fosse vista, na perspetiva dos olhares das viúvas
da aldeia, como um local pouco recomendável pela suposta promiscuidade que por
lá reinava e à qual o padre fizera na missa de domingo, embora velada, uma
referência depreciativa às mulheres que a habitavam.
Às seis e meia, o carro percorria os metros
finais de uma estrada que acabava naquela terra isolada do Douro – Pedregal. Apesar
do rio a escassa distância, aquelas terras não beneficiavam das vantagens da zona
demarcada do vinho do porto. Terra pobre em concelho pobre. Devastada pela
emigração que lhe levara os homens, Pedregal era terra de amazonas. Mulheres robustas,
precocemente gastas, touca e avental, saias largas pelos joelhos, pernas nuas, braços
fortes e tisnados, carregavam, ao final da tarde, cestos, produtos da terra,
enxadas, filhos pequenos, trouxas dos filhos e da casa, e animais.
Dalva era a mais nova dos cinco
filhos da proprietária da venda da aldeia. Ficara ela. Quatro anos antes, trocara
com agrado os estudos para cuidar da doença da mãe e do pequeno negócio. Com os
seus 20 anos, os dias eram demasiado longos para ela. Dormia até tarde, substituía
a mãe na hora da preparação do almoço, aviava as velhas viúvas da aldeia,
recebia o correio, lia as cartas de França ou da Alemanha, cumprimentava o velho
padre da igreja em frente, que não evitava em olhá-la demoradamente alertando-a,
com o sotaque arrastado e cantado do Porto, para os perigos de tanta beleza, «Dalbinha! Dalbinha!». Pela tarde, como
em todas as tardes, sentava-se no banco de pedra à porta da loja a respirar, entediada.
Entrava ocasionalmente para atender o telefone, chamar um carro de praça de
Santa Marinha, despachar um cliente esporádico, e voltava para o banco à sombra da
roseira retorcida de pequenas rosas escarlate. Conversava com os velhos da
aldeia que por ali ficavam, simplificava na roupa, descuidava-se na postura naquelas
tardes quentes. Não nos olhares para o professor que passava religiosamente àquela
hora.
Quando o motor do Fiat se fazia ouvir, já Dalva
tinha alongado o corpo, prendera melhor o cabelo, colocara-se na posição mais
favorável. E eram tantas, Dalva, filha de Júpiter. No momento fugaz em que cruzavam
os olhares, Dalva esboçava, sem se descompor, um ligeiro sorriso atrevido. E
era aquela postura de felino e aquela simplicidade que a tornavam, aos olhos de David, surpreendente bela. Como o comovia aquele toque de aparente
negligência. As t-shirts e as calças de ganga que usava habitualmente
desenhavam-lhe um corpo magnífico. E ela sabia-o. O padrão não variava: fundo liso,
riscas finas brancas horizontais adossadas a outras vermelhas ainda mais finas contornavam
e realçavam os volumes de um busto perfeito e de uma cintura jovem. Os cabelos
castanhos com laivos dourados apanhados atrás deixavam o rosto e, sobretudo, o
sorriso brando superar a frieza da perfeição clássica.
O calor do fim do dia parecia ter
atingido o pequeno carro pelas curvas da margem direita do Douro. Seguia em
sentido contrário ao rio. Dalva mostrava-se entusiasmada com o convite para uma
noite na discoteca com os amigos de David e tudo fez para que os monossílabos
bruscos e o amuo dele se dissipassem. Tinha percebido desde o primeiro momento que
algo o perturbara e, sem alterar a rotina dos meses anteriores, colocou, como
colocava sempre, a mão na perna dele e esperou que a mão dele a tocasse, como
tocava sempre. Deixou, como só as mulheres sabem, e sem que houvesse menor
indício de vulgaridade naqueles descuidos, que o próprio percurso sinuoso do
rio deixasse assomar o joelho redondo, a coxa lisa, que o vestido se descompusesse
e deixasse, por momentos, que parte do seio direito se visse. A mão que sempre
a tocara não escondia o mau estar nem o silêncio obstinado. Rodava impacientemente
o botão do rádio, tirava e punha cassetes, rebobinava-as, guiava olhando a
estrada de testa congestionada pela aversão. Não sabia como comportar-se, ou
para onde ir, o que dizer. Não encontrava, no fundo, uma justificação para
desistir da noite com os amigos. Podia ter-lhe pedido que tirasse o vestido
branco de cetim e voltasse aos jeans e tshirt, mas a ideia de condicionar alguém
estava fora das suas cogitações.
O mau humor não se dissipou ao
jantar. Comeram pouco e quando David por breves momentos a olhou nos olhos,
Dalva percebeu o pânico instalado no namorado. Não o inquiriu nem o condicionou.
Falou do livro que andava a ler - porque lia noite dentro, dos livros que a
despertaram para o hábito da leitura, de Eça
de Queiroz, fez referências pormenorizadas aos lugares de A Cidade e as Serras, que tinha como
cenário aquela zona. Pela primeira vez, Dalva falou mais do que ele. E fê-lo
com graciosidade, sem aparente esforço, como
diriam os italianos do quattrocento,
com sprezzatura. David percebeu
nessa altura que não só desconhecia o que Dalva lia, o que ouvia, do que mais
gostava, mas também se tornou ainda mais claro de que ela o amava. Desde que o
conhecera, passara a ser não só o porta-voz de um mundo novo como também o
próprio mundo. Gostava de o observar, como se movia, como se comportava. Talvez
fosse a melhor maneira de o conhecer. Mais, escutava-o. Mais, estava-lhe grata.
Mesmo resignado, a má disposição
de David não se desvaneceu por completo e o resto do percurso foi marcado
pelo entusiasmo moderado e pela ternura discreta de Dalva, que nunca provocaram
nele qualquer tipo de constrangimento. Virou-se mais para si, para as músicas
dela, e que eram também as dele: Louis
Amstrong, Nat King Cole, em
espanhol, uma descoberta para ela, e, sobretudo, as de Ella Fitzgerald que lhe pareceram as mais adequadas para retirar o
companheiro do ambiente soturno em que se metera. Conhecia-as de cor. Suavemente,
na penumbra que os envolvia, sobrepunha a sua voz à de Ella. Dedicated to you
era canção preferida de David, e Dalva cantava-a baixinho, «If Ishould write a book for you/ … / That book would be like my heart and me/Dedicated to you» e tornava a sua voz imperceptível durante
parte do tempo dando espaço à surdina do trompete, à orquestra, aos
pensamentos, regressando para sublinhar, «If I should find a twinkling star/ One half so wondrous as you are/ That star would be like my heart and me /Dedicated to you», prolongando, para além da
voz de Ella, o u em diminuendo.
Chegaram mais cedo que os amigos à
discoteca e sempre que alguém entrava, o coração de David saltava. E tal como
ele previa, aconteceu o que mais desejava e, também, o que mais temia: Luísa
também viera.
Deixara-o há alguns meses. Mulher de
mil encantos, mulher que moldou os seus gostos, mulher que ocupou obcecadamente
todos os seus pensamentos. No dia em que a conheceu, não conseguiu dormir; quando
soube do interesse dela em voltar a sair com ele, não acreditou; quando lhe deu
o primeiro beijo, não soube se devia rir ou chorar. Portuense, aluna da
faculdade de medicina, Luísa falava, ao contrário do que seria de esperar, de
cinema e de teatro, recomendava o cinema fantástico do Fantasporto, referia, a
miúdo, as propostas alternativas do FITEI (festival de teatro do Porto) e
gostava, em particular, de livros, dos sul-americanos - tão em voga com o
prémio nobel de Garcia Marquez. Mas era de poesia que falava com mais
entusiasmo. Iniciou-o em Fernando Pessoa, nos heterónimos, mostrava preferência
por Ricardo Reis, lia-lhe os modernistas portugueses. David sucumbiu não só
à beleza de Luísa, mas também ao poder da palavra, ao entusiasmo, às escolhas
que fazia, ao cosmopolitismo de Luísa. Quando terminou a relação, falta
dizê-lo, fê-lo com a delicadeza que se esperava: transcreveu um poema de Mário de Sá Carneiro na página
dedicatória do livro que lhe oferecera - «Um
pouco mais de sol – eu era brasa / Um pouco mais de azul – eu era além / Para
atingir faltou-me um golpe de asa …. Se ao menos eu permanecesse aquém …»
e terminava com a ideia de que ao ler o livro David compreenderia melhor a
decisão dela.
Um enigma que o havia de
consumir.
Estava mais magra e, como muitas
vezes acontece, tornara-se ainda mais bonita. Mantinha uma elegância fora do vulgar, um pouco
francesa misturada com uma certa travessura italiana. O cabelo liso e negro pelos
ombros, risca ao meio bem desenhada, pele morena, olhos de suave recorte
oriental reflectiam requinte e sofisticação e, para além disso, o mistério das
mulheres belas. E mulheres belas, especialmente se ainda são
inteligentes, provocavam em David um tremendo sentimento de insegurança.
Quando viu David, o olhar de Luísa
passou por brevíssimos instantes por ele para se fixar de imediato na companheira do lado, em Dalva, numa avaliação imediata, instintiva, precisa,
para lá do cetim branco e das arrecadas de filigrana fina, para voltar de novo
a David. O sorriso alargou-se, familiar, sedutor, de resgate. Luísa vira uma
igual. Dalva, apesar de surpreendida, compreendeu de imediato tudo. David não foi
capaz de fazer mais nada senão olhar para a universitária, enfeitiçado. Ficou
embaraçado, terrivelmente embaraçado, e o muito que sentiu foi sobretudo
expresso pelo pouco que disse.
Foi uma noite de silêncio,
espaçada por risos nervosos e galanteios. David manteve-se próximo de Dalva, mas
não se esquivou nem quis às conversas curtas e recorrentes de Luísa nem aos
seus subtis sinais de afecto. O barulho obrigava-os a aproximarem os rostos
para se ouvirem. Invocavam um passado recente, recordavam episódios entre os
dois, não evitavam tocar-se. David absorvia cada gesto, cada sorriso, cada palavra, mesmo sem as perceber. O simples fluir do som que as palavras produziam, a
intimidade da conversa, excitavam-no.
Não conseguiu ocultar os sentimentos,
que é, como alguém disse, o primeiro passo no sentido das maneiras civilizadas.
É o risco que a pessoa corre quando se apaixona. Arrisca-se a perder a
dignidade.
Dalva, Dalva, filha de Júpiter.
Dalva, circunspecta, colocava a
mão na perna dele num último esforço para o agarrar, e só a retirou, num gesto
instintivo, quando Luísa fez referência a Aquellos
ojos verdes de Nat King Col e em
particular a Dedicated to you, de Ella Fitzgerald.
Dalva inclinou-se, e com uma tremura na voz
embargada suplicou-lhe ao ouvido, «Vamos …?» - desviando o olhar, escondendo-o.
Estava só. Sentia-se uma intrusa num ambiente adverso.
Num lampejo de lucidez, David percebeu o desconforto e o abandono da namorada.
Era tarde. Tudo estava em ordem: o
carro verde seguia agora no mesmo sentido do rio. O Douro brilhava do lado
esquerdo. O contorno dos ciprestes, esguios e nítidos, que pontuavam a paisagem duriense entrava
pelo céu claro daquela noite sem ar. O silêncio só era perturbado pelas janelas
abertas e pelo barulho de um motor apático.
Embora por diferentes razões, o
silêncio entre eles exprimia tudo o que sentiam. Não foi pronunciada uma única
palavra. Tiveram a inteligência de não falar. Não se pode prever as
consequências que as palavras podem causar, os mal-entendidos, o efeito
explosivo. De olhar quase cego, com o vento no rosto, David não conseguia
esquecer as palavras que ouvira nem o beijo fresco de despedida no canto da
boca. Luísa sabia que por esse último beijo seria sempre recordada. Como
traduzir aquele beijo em palavras? Enquanto o silêncio perdurou, repetiu mentalmente,
uma e outra vez, as conversas, misturando o que ouvira com o que tinham dito e
com o que desejava ter dito. Atribuiu significados aos mais pequenos gestos,
aos olhares, interrogou-se, especulou, procurou as palavras certas, reconstruiu
diálogos, esboçou sorrisos. Tudo lhe parecia mais nítido.
Quando o carro se preparava para desviar
do rio, a escassos quilómetros da aldeia, Dalva, num gesto de condescendente
ternura, colocou, como colocava sempre, a mão na perna dele e a mão dele, num
gesto espontâneo de contrição, tocou-a de imediato, como fazia sempre.
Do promontório via-se o rio ao
fundo, apertado por montes e vinhedos. Há muitos no Douro, mas aquele fora o
primeiro local que David escolhera para passar as tardes de ócio. Um pequeno
desvio em terra, ladeado por olmos, castanheiros, giestas, escondia o carro, deixando-o
suspenso com o rio aos pés. Era ali que passavam as tardes. Dalva sentia-se à
vontade, aliviada, de brilho nos olhos. A mão que colocara na perna dele,
já afagara a mão de David, já notara a excitação, já repousara lá. O Fiat 127
verde estava de frente para um rio largo, brilhante. Dalva retirou os brincos,
soltou o cabelo, já descalçara os sapatos de salto. Passou para o banco de trás
com a desenvoltura de quem o fizera de outras vezes. David seguiu-a.
Sentou-se primeiro. E ela em cima. Virada para ele. O vestido de cetim branco
rodado facilitou o contacto quente dos corpos. Inclinou a cabeça na direção do
peito e permitiu que David retirasse, de um gesto só e como que por magia, as
pregas, os folhos e os franzidos que escondiam os seios rijos. Na memória
dele, toda a
noite, a pouca luz e toda a beleza se imobilizaram nesse momento. O
momento em que a imagem de Dalva superava os mestres barrocos e tornava-se numa
obra-prima viva, sedutora, eloquente. A luz de um luar quase pleno contrastava
um corpo firme de uma voluptuosidade estonteante. Os lábios dela, luxuriantes e
ternos, redimiam-se de um silêncio atroz. Dalva oscilava entre a meiguice e o
enliçamento animal. Esmagavam as bocas, mordiam-se, chupava-lhe as mamas
túmidas, paravam para ganhar fôlego e era nestes instantes, presos pelo sexo,
que se olhavam deslumbrados.
«Amo-te», sussurrou-lhe ao ouvido
pela primeira vez. Dalva sorriu.
David sabe, hoje, que a bela
Dalva – a bela Afrodite, pertencia ao grupo de mulheres que, a começar pelo
corpo e a acabar na alma, se tornaria a mulher perfeita. A verdade, no entanto, é que se
tornara evidente que apesar de todos os seus encantos – a sua ternura, a sua beleza,
o seu riso fácil – David nunca poderia amá-la. David tinha um enigma que o
consumia.
Orfeu e Eurídice, Companhia Nacional de Bailado
Para além da frivolidade que lhe está inerente,
o facebook é sobretudo um espaço de partilha:
vê o que eu vejo; gosta do que eu gosto; lê o que eu leio... Segui a sugestão
da Alexandra e estive no Teatro Camões para o magnífico Orfeu e Eurídice. A coreografia
de Olga Roriz mexe connosco, pura emoção, deslumbramento; a
música, com orquestra e coro presentes, duplicou o prazer do espectáculo; os figurinos de uma
simplicidade e equilíbrio surpreendentes; e a luz, num cenário
completamente negro, desenhou espaços, marcou ritmos, deu protagonismo.
terça-feira, março 4
domingo, fevereiro 23
L’Arpeggiata de Christina Pluhar
Eu sei que há palavras que não devem usar-se muito. Gastam-se, desvalorizam, temos poucas, devemos
guardá-las para ocasiões muito especiais. Mas o concerto do L’Arpeggiata de
Christina Pluhar foi fantástico. Uma viagem musical na região do Mediterrâneo. Um
itinerário surpreendente num auditório cheio. A convidada do grupo foi a
fadista Mísia à guitarra do brilhante Sandro Costa. E quando ela cantou, estranhei, em mim que não
gosto de fado, o arrepio que me percorreu.
sexta-feira, fevereiro 7
sábado, janeiro 18
Cru
Cru. (Diz-se, em pintura, dos tons duros em que, entre os
escuros e os claros, não há transição. in Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa). Cru, não mais. Filme duro: pelos sentimentos que provoca; pela incapacidade de Solomon explicar o óbvio; pela austeridade cromática; pela
irracionalidade de um tempo que nos parece ficcionado, e não é; e um alerta, por
sabermos que, disfarçada por outras roupagens, a escravatura existe.
sexta-feira, janeiro 10
The Good Wife, 4ª temporada
Começou a 4ª temporada The Good Wife,
canal 2. Não sei se partilham, mas é, provavelmente, uma das melhores séries sobre
o poder judicial e, também, sobre o poder político e económico. Mas não se esgota
por aqui, evidentemente. Os guiões são sofisticados e imprevisíveis. Os
diálogos brilhantes e inteligentes. As interpretações convincentes e de uma
elegância extrema. As personagens, complexas, evoluem engenhosamente ao longo
das temporadas. A não perder.
quinta-feira, janeiro 2
O Herói Discreto, Mário Vargas Llosa
Não será uma obra-prima, não deslumbra, mas deu-me um imenso
prazer ler o último livro de Vargas Llosa. Sabor a novela sul-americana, bem escrito como um prémio nobel
sabe, personagens simples, relações complexas. Só para vos aguçar o apetite: Felícito
Yanaqué tem uma amante muito mais nova – Mabelita, de uma beleza exuberante; para
deserdar os filhos, Ismael, um octogenário rico, casa com a empregada
escandalosamente jovem. Tudo isto ligado pelo casal de outros romances de
Vargas Llosa - Lucrécia e Rigoberto, mestres da volúpia.
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