sábado, setembro 19

Por Armamar


          Saídos da autoestrada, os últimos 15 quilómetros até Armamar não se esgotaram facilmente. Serpentear por socalcos de vinhedos e pomares numa paisagem estonteante, e por uma estrada que se degradava cada vez mais, fizeram com que duvidássemos do caminho para Armamar.
          Dobrado sobre a bengala, um homem gasto descia a rampa da casa.
          - Boa tarde, vamos bem para Armamar?
           Apoiou a mão nodosa na janela do carro aproximando o ouvido.
         - ARMAMAR, vamos bem? - repetimos.
         - Para Armamar? Os senhores não são de cá, pois não? Armamar é já aí, ao birar da curva, passam o biaduto e logo bêem … Olhem, benham beber um copo!

quarta-feira, setembro 2

Por Praga e Viena







Penso que é isto que procuramos numa cidade: uma estrutura arquitectónica, urbanística e paisagística inovadora, que distinga os povos e que preserve uma vivência colectiva única.
Foi isso que encontrei nestas duas capitais do centro europeu. Palmilhei Praga e Viena durante uma semana e verifiquei o que esperava: belas cidades de passado forte e rico. Mas a capital austríaca pareceu-me das mais perfeitas. Surpreendeu-me o requinte e monumentalidade dos edifícios, a quantidade e cuidado com os espaços verdes, a aposta nos diversos tipos de transportes (realce para as bicicletas e o espaço destinado aos peões) e, sobretudo, a maneira como os vienenses vivem descontraidamente a cidade.

terça-feira, agosto 4

Sebastião Salgado, de novo


Pràs bandas de Belém, na Cordoaria Nacional, último dia de Génesis, de Sebastião Salgado. A extensa fila ultrapassava a dos pasteis e a do Mosteiro. Cinquenta minutos de passos curtos, de muitas pausas embalando o corpo de uma perna para a outra. A conversa com as minhas raparigas fluiu amenamente. O linguajar que pairava pela sombra quente do Torreão Nascente da Cordoaria era dos mais diversos pontos do frágil planeta. Tal como as belas fotografias do brasileiro Sebastião Salgado. Era disso que tratava a exposição: de fragilidade e beleza.

segunda-feira, julho 27

O Homem Lento, J. M. Coetzee



Não gostei deste "O Homem Lento", de J. M. Coetzee, mas alguns dias após a sua leitura o fotógrafo Paul Rayment, personagem deste Coetzee, não pára de me incomodar.

"Fala de amor. Não pode ter a certeza, não tem óculos postos, mas dir-se-ia que um rubor vai subindo lentamente pelo pescoço de Marijana acima. Marijana diz que quer que ele se refreie, mas isso é um disparate, ela não pode querer mesmo dizer isso. Qual a mulher que não quereria uma torrente de palavras de amor derramada de vez em quando sobre ela, por mais questionável que seja a sua origem? Marijana está a corar, e pela simples razão de que também ela é lábil. E portanto? O que vem a seguir? Portanto, de facto tudo é coerente! Portanto, por detrás do caos da aparência funciona de facto uma lógica divina! Wayne vem do nada para lhe deixar a perna feita em papa, portanto meses depois ele cai no chuveiro, portanto esta cena torna-se possível: um homem de sessenta anos imobilizado mais ou menos rígido na cama, a tremer intermitentemente, a declamar filosofia à sua enfermeira, a declamar amor. E o sangue agita-se nela, reagindo!"                      
                                                                                                           

segunda-feira, julho 6

O horrível tornado belo. A Senda Estreita para o Norte Profundo, de Richard Flanagan


Excerto de uma entrevista a uma revista brasileira: “Uma das melhores coisas na cultura japonesa é a literatura e, nela, Matsuo Basho. Queria usar o que há de melhor na cultura japonesa para falar do que houve de mais baixo e que esteve naquela guerra imperial em que foram cometidos crimes hediondos. Quanto melhor eu usasse essa relação mais seriam as hipóteses de ter um bom livro, que não julgasse. Queria olhar para aqueles homens. Pensei que se pudesse ter um história de amor no centro de um livro sobre um prisioneiro de guerra que achou ter perdido o amor da sua vida teria o necessário para que a romance funcionasse”, conta Flanagan, explicando também o título, réplica de uma frase de Basho, o poeta que dois responsáveis pelo exército imperial japonês citam nos intervalos do horror que promovem. Basho, dizem eles no romance, é um dos exemplos do “dom supremo do Japão”, o dom de “retratar tão concisa e maravilhosamente a vida”. Na interpretação daqueles militares, no ano de 1943 esse dom materializa-se no “objectivo supremo”: a construção do caminho-de-ferro."

terça-feira, junho 23

Os rapazes de Rui Jorge


Há qualquer coisa estranha nos rapazes de Rui Jorge. Não fossem as camisolas das quinas e alguns rostos familiares e não seria fácil identificá-los. É certo que o toque na bola denuncia-os um pouco, aproxima-os da europa meridional, mas a confiança e a serenidade de jogadores e do corpo técnico afasta-os definitivamente para outras latitudes e para outros desportos - para o rugby, por exemplo. Não sei caracterizá-los de outra forma: é gente bem-educada. Sem altruísmo não pactuam com a simulação, com o embuste, não se enredam em simulações de faltas inexistentes, não se vislumbram tiques de fidalgos da bola. Não perdem tempo nas substituições nem na reposição da bola em jogo nem nos habituais e inconsequentes protestos com o árbitro.
Esta equipa de Rui Jorge parte de premissas de que são feitas as grandes equipas: divertem-se coletivamente com o que fazem, e jogam sabendo que a probabilidade de saírem vitoriosas aumenta com o tempo efetivo de jogo.

segunda-feira, junho 15

Ti Elias Mão-de-Ferro, personagem fabulosa da Terra Chã.



«Lá em cima, as mulheres gritaram, através das janelas, sem saber já se o faziam em proteção de uns ou de outros.
No momento em que espreitou pelo postigo, com a espingarda na mão, o rapaz percebeu que o pai se encontrava já em cima de um cavalo, com as mãos atadas atrás das costas e a corda à volta da cabeça, três dos homens de capuz segurando o animal e invectivando-o com insultos e ameaças. E, ao vê-lo, gritou, ergueu a arma, muito atabalhoado, e disparou numa direcção indefinida.
O cavalo foi o primeiro a reagir, erguendo as patas da frente e partindo a galope quinta acima. Os encapuzados desataram a correr, muito atarantados, como se disso dependessem as suas próprias vidas. Álvaro Augusto Silveira-Goulart, esse, ficou pendurado pelo pescoço, a sacudir-se num estertor, e depois apenas a balançar-se ao sabor do vento e da gravidade, já inerte, com um estranho sorriso na boca.
Elias puxou uma fumaça do seu cigarro grosseiro, agora já reduzido a uma ponta apenas. Bateu a cinza no cinzeiro.
- Um desses homens era João de Brito Carreiro, empregado da casa.
José Artur cruzou os braços, num tom de desafio.
- Outro era o Ti Elias.
O velho fitou-o de volta. Fez um gesto com a cabeça.
- E o outro era o teu avô José Guilherme.»
 Arquipélago, Joel Neto

domingo, junho 7

A Paixão de Jesus


Não falemos dos escandalosos dinheiros que auferem as vedetas da bola, porque neste caso o dinheiro não foi determinante - mais milhão menos milhão em tantos milhões. Mas sim do tão propalado e tão em desuso amor à camisola: Jesus sabe muito bem que trocou êxitos previsíveis por um futuro incerto e hipotecou uma carreira internacional a troco de uma paixão que lhe poderá trazer imensos dissabores. Neste ambiente medíocre e de guerra instalado, um acto como este requer muita coragem e muita confiança em si próprio. Mas não é isso que se exige a um Homem?


segunda-feira, maio 11

Eu, Cláudio, de Robert Graves. Um regalo


Um romance histórico maravilhoso contado pelo futuro imperador Cláudio, desprezado pela gaguez e pela aparência. Do sábio Augusto e sua vilã mulher Lívia, ao sádico Tibério, até ao excessivo e louco Calígula.


" - Pelo amor que me tens, Cláudio, faz o que te pedem. Por amor do nosso filho. Eles matam-te, se te recusares. Já mataram Cesónia. Agarraram a filhinha pelos pés e fizeram-lhe saltar os miolos contra um muro.
- Tudo vai correr bem, senhor, logo que te acostumes - disse um soldado, sorrindo. - Não é assim tão desagradável a vida de um imperador.
Não protestei mais. Para quê lutar contra o destino? Carregaram-me pelo pátio de honra, cantando o hino ridículo composto para a subida ao poder de Calígula. Forçaram-me a pôr a coroa de folhas de carvalho feita de ouro. Para conservar o equilíbrio, tinha de me agarrar com toda a força aos ombros dos caporais. A coroa ficara-me em banda, sobre uma orelha. sentia-me perfeitamente ridículo. Assemelhava-me a um criminoso que levavam para a execução. As trombetas entoaram a Saudação Imperial."
...
"Eis-me, pois, imperador. Que tolice! Mas ao menos poderei impor que leiam os meus livros. Audições públicas perante uma numerosa assistência. E sem contar que são bons livros - trinta e cinco anos de assíduo trabalho. É de justiça, apenas."

quarta-feira, abril 29

Uma "Ikea"


Um contraste que não deixa dúvidas a ninguém. Parabéns aos designers da Ikea. 
Como reverter esta situação que se generalizou e desfigura as nossas casas? Uma ideia: porque não descer o IMI a quem tem bom gosto (não tem marquises).


sábado, abril 25

Cravos vermelhos



Há uns anos, a propósito do 25 de Abril, escrevi o editorial do jornal escolar.
“Para comemorar o 25 de Abril, pedi duas pequenas histórias aos meus colegas Jorge Santos e Turé Couto que viveram intensamente este período e o anterior. Vale a pena lê-las porque, para além do seu valor literário, os mais velhos recordarão com certeza esse tempo mesquinho e claustrofóbico. Para os mais novos, os nossos alunos, para quem esta data é sobretudo um feriado bastante oportuno, espero que vejam nestas histórias, puras histórias de ficção: ou seja, aos olhos de quem sempre viveu em democracia, pareçam inacreditáveis, irreais, de um tempo que acabou há muito. Será sinal que Abril se vai cumprindo. Não devemos, nesses inquéritos feitos na véspera do dia, estar muito preocupados se eles sabem ou não quem foi o Salgueiro Maia ou o Otelo. Não passamos nós com uma idêntica leveza pelo 5 de Outubro? Seremos menos republicanos por isso? Valorizemos antes, e diariamente, os ideais de Abril e da República – Liberdade, Igualdade e Fraternidade.”

sábado, abril 18

No comment



Seguindo a ideia do Euronews, há imagens, canções, como neste caso, que não necessitam de qualquer introdução, prescindem de qualquer comentário ou explicação.

quinta-feira, abril 2

Cinco dias em Florença



Cinco dias em Florença e os sinais foram por demais evidentes, arrisco generalizar: a prosperidade económica e cultural ao longo de tantos séculos nota-se a cada esquina desta magnífica cidade. Uma cidade pintada pelas cores do rio, de uma riqueza explícita que se manifesta nos palazzos renascentistas, na maneira como preservaram todo o edificado, como integraram o novo, como é tão óbvio para os florentinos que o luxo e a arte são eternos, como conservam os seus hábitos quotidianos. É fácil identificá-los. Distinguem-se pela elegância das roupas, pelos passeios de bicicleta no meio do formigueiro de turistas de telemóvel em riste, pela serenidade com que passeiam os cães ao final da tarde. Aceitam a avalanche diária com a altivez de quem sabe pertencer a uma cidade à escala do homem rico e culto.

sexta-feira, março 20

A cambalhota de Messi

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Para quem perde, a zombaria. Só as vitórias contam. Os louros são sobretudo para quem finaliza. Os jogadores sabem disso. Posam, sabendo que as câmaras os perseguem. O regozijo generaliza-se até à histeria se um túnel acontece. O de Messi foi fantástico, é verdade. E a cambalhota? A cambalhota no final do jogo contra o Manchester City (12:23). De uma eloquência perfeita - a desilusão estampada na relva.

quarta-feira, março 4

Felisbela, minha avó

Luis Barreira

De há um tempo para cá o meu irmão vasculha o passado. Mexe em gavetas, revolve baús, limpa o pó de álbuns fotográficos. Se bem o conheço, não procura recordações revivalistas, tão pouco se esconde, nesse emaranhado de coisas, de um presente complexo. Procura sim, como todos os artistas, tropeçar no que há de eterno nas suas memórias - no belo. Sempre achou que a beleza salvaria o mundo.
Enviou-me duas fotografias da avó Felisbela. Penso cada vez menos nela, apesar de no meu quarto ter uma fotografia em que ela, ainda jovem, ocupa o centro da família. De tão próximas, as fotografias que temos nas paredes das nossas casas acabam por diluir-se. Com esta não será assim.
Numa das fotografias que me enviou, a minha avó posa para o neto mais velho, meu irmão, sentada na ponta de um dos cadeirões da sala de jantar. Ereta, blusa de seda branca com triângulos pretos, olhar direto no primeiro terço da folha, perfil parcial, sorriso forçado, cabelo cuidado, mão esquerda em cima do joelho - o modelo, a professora Felisbela, seguindo as indicações do cânone do retrato clássico. Não fosse a minha avó ali naquele ambiente familiar e os meus olhos nada reteriam.
Mas a primeira que me enviou, esta que vos mostro, tenho a certeza que o comoveu tanto quanto me comoveu a mim. Senti uma saudade imensa. Fez -me lembrar o autorretrato de Rembrandt, de 1669, ano da sua morte. O mesmo rosto cansado, a serenidade estampada no olhar, a luz perfeita de tons suaves do final de tarde, o claro-escuro meigo reflexo da sua maneira de ser, a mesma dignidade, o olhar introspetivo que me emociona.

segunda-feira, fevereiro 23

Território de lugares-comuns


Como tantos outros também eu acabo sempre os livros, esteja a gostar ou não. O Mapa e o Território, de Michel Houellebecq, aclamado escritor francês, Prémio Concourt, não passou, pela vulgaridade e lugares-comuns, de uma enorme perda de tempo.

domingo, fevereiro 15

Oito episódios tão curtos


Oito episódios intensos que exigem do espectador uma atenção especial a todos os pormenores. Diálogos cuidados e densos e Woody Harrelsson e Matthew McConaughey em estado de graça. A investigação sobre os crimes numa região do Louisiana dá primazia ao desenrolar das complexas personalidades dos dois detetives. Neste sentido, a narrativa dá tantos saltos no tempo que oferece uma panorâmica ainda mais ampla da forma como evoluem as personagens. Que pena ser tão curta. E a banda sonora? Tão bela. Tão curta.

sexta-feira, fevereiro 6

A sério?, uma hora rindo, no S. Luiz


Também não arriscámos: sabíamos que os Dead Combo não desiludiriam; conheço e aprecio o trabalho gráfico de António Jorge Gonçalves; faltava confirmar se Nuno Artur Silva, o gajo do Eixo, guionista e novo homem da programação da RTP, seria capaz do desafio e nos retirar o ar sisudo da desconfiança. Conseguiu, foram muito bons.
 Agora, "A sério?", "a verdade é que logo se verá".

terça-feira, janeiro 20

E a noite roda, Alexandra Lucas Coelho



O eterno conflito israelo-palestiniano serve de fundo a um romance como tantos outros. Leio regularmente os textos de Alexandra Lucas Coelho no Público e não estranhei a prosa. Aliás, gosto desde há muito: concisa, atenta ao pormenor, surpreendente bela. Uma bela prenda de Natal.


"O nosso quarto tem uma cama de ferro que range e uma janela sobre o vale. Cestinho deixado pela Meritxell para a primeira manhã: queijo Garrotxa, compota de framboesa, pão escuro, tomates. Tu cortas os gomos, retiras as grainhas, claramente uma rotina. Fico a olhar as tuas mãos, toda a existência de gestos firmes anteriores a mim, e sinto uma dor absurda, como um membro amputado há séculos. Não vivi contigo o que já viveste, e isso é ao mesmo tempo irreversível e inaceitável."

segunda-feira, janeiro 12

Brilhante


"Ao retomar o seu autoexame, admitiu que havia sido um mau marido - duas vezes. Daisy, a primeira mulher, tinha-a ele tratado sordidamente. Madeleine, a segunda, tinha tentado arruiná-lo. Para o filho e para a filha era um pai carinhoso mas mau. Para os pais, tinha sido um filho ingrato. Para a pátria, um cidadão indiferente. Para os irmãos e irmãs, afetuoso mas distante. Com os amigos, egoísta. No amor, indolente. perante tudo o que era brilhante, mortiço. Em relação ao poder, passivo. E com a sua alma, evasivo."


"Queria dizer-lhe que salpicasse o soalho. Estava a levantar demasiado pó. Dentro de minutos gritar-lhe-ia: «Molhe o chão, senhora Tuttle. Há água no lava-loiça.» Mas ainda não. Nesse momento não tinha nenhuma mensagem para ninguém. Nada. Nem uma única palavra."
Saul Bellow, Herzog

sexta-feira, janeiro 9

Charlie Hebdo


Actos chocantes como estes servem também para reafirmar com mais clareza ainda que o projecto europeu é o modelo civilizacional que mais valoriza o ser humano. Sorte a nossa. Devemo-la aos valores saídos da revolução francesa e devemo-la sobretudo a milhões de pessoas que lutaram e morreram por esses valores, desde a antiguidade clássica. É bom ouvir Je suis Charlie.
Preocupa-me, no entanto, constatar que os nossos líderes europeus se esqueçam sistematicamente deles quando abordam questões económicas, enaltecendo e copiando modelos económicos que desvalorizam o trabalho, que não garantem os direitos mais elementares da vida humana e que, inevitavelmente, são incompatíveis com os valores democráticos de que nos orgulhamos.