Quando o calendário do campeonato de futebol da 1ª divisão determinava
o Guimarães-Sporting, dois pequenos leões começavam a contar os domingos que
faltavam para o jogo que representava a oportunidade mais próxima de verem uma
equipa que só conheciam dos relatos da rádio.
Os avisos repetidos vezes sem conta colocavam a viagem a par
das grandes aventuras. A saída ainda de madrugada permitia várias paragens
num percurso tortuoso que começava no Café Capri, local de encontro e “centro
cultural de Vidago”, propriedade do Manel “Capri” - homem aberto, dinâmico, multifacetado
-, e terminava, aproximadamente, cento e trinta quilómetros depois, no centro
de Guimarães. A sinuosidade que acompanhava todo o percurso intensificava-se atingindo
o grau máximo na terrível e mítica serra do Marão. Os noviços leões de olhos
bem fixos na estrada, por recomendação dos mais experientes, tentavam adiar sem
sucesso os avassaladores e fétidos enjoos. Os ares frescos da montanha
restituíam alguma cor à pequenada e arrefeciam o exausto motor do automóvel do
Senhor Pinheiro. O Magalhães, como lhe chamava meu pai, era homem seco de carnes, de
cabelo puxado a brilhantina, de fingida arrogância que se transformava num
afável cavalheiro ao volante do seu Opel Record preto.
“Estamos quase”, dizia.
“Estamos quase”, dizia.
E depois Guimarães. Guimarães representava para mim o
princípio da civilização: o imponente Castelo e a estátua de D. Afonso
Henriques dos livros de História, o rebuliço no largo do Toural, os jardins coloridos
de desenho primoroso e bem cuidados. Nesta peregrinação anual, os velhos leões
não se poupavam a um requintado manjar no restaurante Jordão. A acompanhar o
café, as aguardentes e os cigarros, as conversas eram naturalmente pautadas
pela fluência e inteligência do Felisberto, o francês, com quem o meu pai tanto
gostava de falar. Vejo-o de gabardine clara e jornal debaixo do braço, madeixa caída
sobre óculos estreitos esverdeados e permanentemente envolto numa nuvem de fumo
de cheiro inconfundível a cigarros gauloise.
Era o único emigrante que trazia amigos em vez de fortuna.
Na entrada do estádio, de bancadas a toda à volta, as mãos
dos mais pequenos apertavam-se à dos pais e só se soltavam quando as equipas alinhadas se apresentavam nos seus equipamentos imaculados e botas bem engraxadas: o
Carvalho, todo vestido de preto e leão ao peito, impressionava-me, tal como a
elegância do Alexandre Baptista, as pernas arqueadas do Zé Carlos, a robustez do
maestro Peres; do outro lado, retenho o branco total do equipamento do Vitória
e a impressão de estarmos perante uma equipa do mesmo nível. Sem pestanejar, acompanhávamos
o jogo com as exclamações naturais de quem se sente protegido e seguíamos atentos,
tão habituados estávamos, a agitação dos relatos radiofónicos dos transístores
à nossa volta.
Ao regresso, com as conversas em surdina dos mais velhos, encostado
ao ombro do meu pai, o cansaço vencia-me e o percurso tornava-se mais linear e
mais rápido.
Tenho em casa um velho piano e às vezes aparece alguém para tocar. Quase me apetece-me bater por ver que falta de sorte tenho...
ResponderEliminarCom este texto é a mesma coisa...
Mesmo bem escrito!!!!!!!
Que um curioso naipe de sportinguistas...
Tó