quinta-feira, fevereiro 2

Guimarães




Quando o calendário do campeonato de futebol da 1ª divisão determinava o Guimarães-Sporting, dois pequenos leões começavam a contar os domingos que faltavam para o jogo que representava a oportunidade mais próxima de verem uma equipa que só conheciam dos relatos da rádio.
Os avisos repetidos vezes sem conta colocavam a viagem a par das grandes aventuras. A saída ainda de madrugada permitia várias paragens num percurso tortuoso que começava no Café Capri, local de encontro e “centro cultural de Vidago”, propriedade do Manel “Capri” - homem aberto, dinâmico, multifacetado -, e terminava, aproximadamente, cento e trinta quilómetros depois, no centro de Guimarães. A sinuosidade que acompanhava todo o percurso intensificava-se atingindo o grau máximo na terrível e mítica serra do Marão. Os noviços leões de olhos bem fixos na estrada, por recomendação dos mais experientes, tentavam adiar sem sucesso os avassaladores e fétidos enjoos. Os ares frescos da montanha restituíam alguma cor à pequenada e arrefeciam o exausto motor do automóvel do Senhor Pinheiro. O Magalhães, como lhe chamava meu pai, era homem seco de carnes, de cabelo puxado a brilhantina, de fingida arrogância que se transformava num afável cavalheiro ao volante do seu Opel Record preto.
“Estamos quase”, dizia.
E depois Guimarães. Guimarães representava para mim o princípio da civilização: o imponente Castelo e a estátua de D. Afonso Henriques dos livros de História, o rebuliço no largo do Toural, os jardins coloridos de desenho primoroso e bem cuidados. Nesta peregrinação anual, os velhos leões não se poupavam a um requintado manjar no restaurante Jordão. A acompanhar o café, as aguardentes e os cigarros, as conversas eram naturalmente pautadas pela fluência e inteligência do Felisberto, o francês, com quem o meu pai tanto gostava de falar. Vejo-o de gabardine clara e jornal debaixo do braço, madeixa caída sobre óculos estreitos esverdeados e permanentemente envolto numa nuvem de fumo de cheiro inconfundível a cigarros gauloise. Era o único emigrante que trazia amigos em vez de fortuna.
Na entrada do estádio, de bancadas a toda à volta, as mãos dos mais pequenos apertavam-se à dos pais e só se soltavam quando as equipas alinhadas se apresentavam nos seus equipamentos imaculados e botas bem engraxadas: o Carvalho, todo vestido de preto e leão ao peito, impressionava-me, tal como a elegância do Alexandre Baptista, as pernas arqueadas do Zé Carlos, a robustez do maestro Peres; do outro lado, retenho o branco total do equipamento do Vitória e a impressão de estarmos perante uma equipa do mesmo nível. Sem pestanejar, acompanhávamos o jogo com as exclamações naturais de quem se sente protegido e seguíamos atentos, tão habituados estávamos, a agitação dos relatos radiofónicos dos transístores à nossa volta.
Ao regresso, com as conversas em surdina dos mais velhos, encostado ao ombro do meu pai, o cansaço vencia-me e o percurso tornava-se mais linear e mais rápido. 

1 comentário:

  1. Tenho em casa um velho piano e às vezes aparece alguém para tocar. Quase me apetece-me bater por ver que falta de sorte tenho...
    Com este texto é a mesma coisa...
    Mesmo bem escrito!!!!!!!
    Que um curioso naipe de sportinguistas...

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