segunda-feira, agosto 1

Cartas de Vidago, A Caixa






Chaves, 30 de Julho de 2011
Caro amigo António!
            Ao abrigo da nossa já antiga relação de cordialidade e cooperação endereço-te mais uma carta que tu podes, como sabes, dar a conhecer se lhe vires algum interesse editorial. Desta vez tinha até vontade de lhe dar forma manuscrita, ao estilo do antigo papel de carta, mas as novas e vantajosas tecnologias penetraram de tal forma nos nossos hábitos que já não se conseguem contornar. Qualquer desajeitado pode fazer maravilhas com elas.
            Tem-te a ti como destinatário, mas tem como narratário um universo indiferenciado de leitores que tenham capacidade de literacia suficiente para a interpretar.
            A sequência dos teus mais recentes posts de Amós Oz e a confraternização da Heineken, fizeram-me lembrar uma conhecida alegoria da antiguidade clássica e que eu tenho vontade de adaptar para ilustrar e dar mais consistência a esses posts. Então aí vai:
            Tudo funcionava harmoniosamente naquela ilha. Todos contribuíam com o seu trabalho e com as suas atitudes para que a harmonia não fosse abalada pelo menor deslize. O segredo para tudo isso estava guardado numa caixa que jazia na recôndita e inviolável câmara de um templo imemorial. Essa caixa guardava todos os defeitos e maleitas da humanidade. Lá estava a mentira, a cobiça, a desonestidade, a arrogância, a xenofobia, a petulância, a avareza, a inveja, a ganância, o snobismo provinciano, a falsa modéstia e tantos outros de uma lista lamentavelmente extensa. Essa ilha era o nosso mundo. A curiosidade dos homens foi mais forte do que a inviolabilidade do segredo e, quando a caixa se abriu, avidamente se libertaram agoirentas, venenosas, malévolas, maquiavélicas, destruidoras, penetrantes, traiçoeiras, contagiosas, todas aquelas maleitas sociais. Em forma de pomba branca as mais hipócritas, em forma de abutre as mais frontais, todas se apoderaram da estabilidade daquela ilha. Foi a partir daí que começaram a aparecer os usurários, os pobres, os ricos, os invejosos, os hipócritas, os vigaristas, os ditadores, os diabos, os deuses, os padres, os moralistas… e os políticos. De então para cá, forças antagónicas protagonizadas por estas figuras têm-se digladiado num emaranhado aparentemente insolúvel.

O bom gosto, o bom senso, a harmonia, a cooperação, a tolerância, a solidariedade, a cordialidade são valores que têm sido ciclicamente renovados e aniquilados por estas lutas ao longo da história. Parece-me que estamos actualmente na fase da sua aniquilação. Agora, a caixa está inviolavelmente fechada à espera que apareça uma força social e humana suficientemente poderosa para encerrar as falsas pombas e os abutres agoirentos e assim regenerar aqueles valores.  
Proponho um caloroso e prolongado brinde a esse momento. Não precisa de ser com flute de D. Pérignon ou Möet Chandon; pode ser com uma garrafa de Heineken… ou Sagres.
Um brinde com abraço sincero e cordial
José M. Carvalho

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