Há um sentimento
generalizado que se sente em todas as conversas de vivermos um tempo de uma
inusitada violência, de uma perda de sensibilidade moral, de decadência dos
códigos sociais e a viva impressão de que tudo se desmorona. Até os jovens
fazem sistematicamente comparações com um tempo “paradisíaco” de que ouviram
insistentemente falar. “No meu tempo…” é
a expressão mais vulgar que inicia um guião com um final feliz.
Que tempo é este
de que tanto falamos? Com que recordações sustentamos este passado?
Recordo Vidago
nos finais dos anos sessenta: relembro os intermináveis
jogos de futebol em que a primeira coisa que muitos dos meus amigos faziam era
descalçarem os socos ou as botas e jogarmos, sem restrições, aquelas partidas
magníficas, ou os jogos entre equipas rivais da distrital marcados
pelas bengaladas ao ritmo dos golos e do copo do tinto, salpicados pelos gritos
histéricos das mulheres; ao meu pai, ouvi contar os finais trágicos das “Chegas
de bois barrosãs”, ou os terríveis ajustes de contas por “questões de água”;
recordo, também, a alegria e o reconhecimento com que, por altura do Natal, os
empregados da Empresa das Águas falavam do peixinho de bacalhau dado pelos patrões e também dos protestos de alguns amigos pelos inúmeros cântaros de água que tinham
que carregar para as necessidades da casa; vem-me à memória os penosos
regressos a casa daqueles, e eram muitos, que diariamente acabavam o dia na
taberna da Tia Florinda e desafiavam a brancura cortante das geadas
transmontanas; no verão, o ribeiro era a felicidade de todos, porque a piscina
do hotel estava reservada aos que podiam ficar em dívida com a Menina Alicinha,
a quem tiravam o chapéu respeitosamente - “respeito”, que se confundia quase
sempre com submissão; com grande saudade, recordo o Parque de Vidago com os
milhares de árvores que conhecíamos tão bem - o nosso mundo de aventuras;
“Mundo de Aventuras” era, também, a nossa revista de quadradinhos que se desfazia de mão
em mão e me punha lado a lado com os meus heróis – o Major Alvega, o Ene 3 e o
rapidíssimo Kit Karson; recordo, ainda, com um “estranho” sorriso, as
monstruosas contas de dividir que tornavam a escola num inferno, e, como poderia esquecer, o
Ilídio que resistiu heroicamente a trinta e cinco reguadas pelos trinta e cinco
erros, sem verter uma lágrima!
Eram tempos muito
difíceis e todas as estatísticas sócio-económicas o confirmam.
Seriam tempos
mais humanos?, mais justos?, mais solidários? Penso que não. Penso que o nosso
passado é uma imagem filtrada pelos olhos da criança que fomos. Provavelmente apontamos o futuro com um passado reconstruído à imagem dos nossos sonhos. Há
uma frase de Maurice Merleau-Ponty que diz: ”Nunca me recomporei da minha
incomparável infância”. Comigo é um pouco o mesmo.