Na primeira aula e para justificar este meu ar gasto, costumo perguntar aos alunos se imaginam há quanto tempo estou na escola. Perante o encolher de ombros tento responder com alguma naturalidade: não sei se é neste ou no próximo ano que faço mil. Alguns riem, outros, cruéis, acreditam. É verdade, entrei aos 4/5 anos pela mão da Senhora Professora Felisbela, minha avó, e ainda não saí. Não exagero se disser que, desde muito pequeno, tudo o que se relaciona com Escola - o ensino, professores, alunos, exames, ministros da educação - é o tema da conversa que pauta regularmente as refeições de minha casa.
Em manhãs primaveris seguia a minha avó até à escola em Vila Verde de Oura, perto de Vidago. Levava a pequena ardósia, um caderno e meia dúzia de lápis de cor onde me refugiava dos primeiros olhares dos alunos. Não ia sempre porque só atrapalhava e a professora reprovava a excessiva liberdade do neto.
Recordo com particular acuidade as bofetadas que a minha avó dava ao Augusto. Mesmo para os seus catorze anos, o Augusto era grande e forte, o dobro dela, dócil, gentil, mas incapaz de fazer a quarta classe. Desesperava-a pela falta de memória e pela incapacidade de resolver o que quer que fosse. “Augusto baixa-te…” O rapaz, submisso, vergado pela vergonha, aproximava-se, e zás… Não usava a régua, mas paralisava os quarenta e tal alunos de roupas remendadas das quatro classes com o olhar por cima dos óculos ou, em último caso, com a ameaça de “Vou dizer ao teu pai.”
Quando os dias se tornavam maiores e o exame da 4ª classe se aproximava, arrastava-os para a varanda da nossa casa e prolongava até à noite as aulas, os raspanetes e os puxões de orelhas. Tempos difíceis aqueles!
O que recordo da escola dos anos sessenta é o ambiente tenso, o medo que nos roía as entranhas, os velhos mapas de um Portugal imenso, os rostos de Salazar e Américo Tomás que ladeavam a cruz de Cristo, a ladainha das tabuadas, os sublinhados vermelhos dos erros ortográficos. E o Ilídio, o herói da classe, que ultrapassava todos os limites e levava tantas reguadas quantos os erros dados, sem verter uma lágrima! Recordo, ainda, alguns anos mais tarde, o emigrante Augusto dobrar-se novamente perante a minha avó, agora para agradecer todo o empenho e interesse demonstrados. “Queria o nosso bem, ah!” – e não se enganava.
Já na minha adolescência, e com o 25 de Abril, a educação foi finalmente considerada como factor diferenciador e decisivo do regime democrático. A escola, tal como o país, transformou-se numa festa e aberta a todos. Democratizou-se, humanizou-se e levou para o seu seio toda a diversidade e os problemas de uma sociedade pobre e analfabeta. Até aí, a escola pública servia para simplesmente ensinar a ler, a escrever e a contar, e, para uns quantos, muito poucos, um meio de chegar à faculdade.
Se o espaço escolar se tornou num local aprazível, já a sala de aula, na sua essência, não se alterou significativamente, não podia (embora alguns “iluminados reformadores” nos pedissem que também a sala de aula fosse uma festa), nem pode ser diferente, porque para os jovens que todos os dias têm de ultrapassar dificuldades, de se confrontar com eles próprios e com os outros, aprender é entrar em contacto com as coisas que não se conhecem e o que se desconhece faz medo. E é por isso que a relação entre alunos e professores na sala de aula se mantém naturalmente tensa. Mas nem por isso os nossos alunos, tal como o Augusto, deixam de reconhecer a importância que cada um de nós tem para as suas vidas, pela atenção e generosidade dispensadas. Já não tiram o chapéu nem se dobram, mas sorriem, com um sorriso que nós conhecemos tão bem e nos enche a alma.