«O que acontece aos outros, as infelicidades, as calamidades, os crimes, tudo isso nos é alheio, como se não existisse. Inclusivamente o que nos acontece a nós nos parece alheio depois de já ter acontecido. Há quem seja assim toda a vida, eternamente jovem, uma infelicidade. Uma pessoa conta, fala, diz, as palavras são grátis e saem aos borbotões às vezes, sem restrições. Continuam a sair em qualquer ocasião, quando estamos bêbedos, quando estamos furiosos, quando estamos abatidos, quando estamos fartos, quando estamos entusiasmados, quando nos sentimos apaixonados, quando é inconveniente que as digamos ou não podemos medi-las. Quando fazemos mal. É impossível não nos enganarmos. O mais estranho é que as palavras não tenham mais consequências nefastas do que as que normalmente têm. Ou talvez não saibamos suficientemente, julgamos que não têm tantas e é tudo um desastre perpétuo devido ao que dizemos. Toda a gente fala sem cessar, a cada momento há milhões de conversas, de narrações, de declarações, de comentários, de bisbilhotices, de confissões, são ditos e ouvidos e ninguém os pode controlar. Ninguém pode prever o efeito explosivo que causam, nem sequer segui-lo. Porque apesar de as palavras serem tantas e tão baratas, tão insignificantes, poucos são capazes de não fazerem caso delas. Dá-se-lhes importância. Ou não, mas ouviram-se.»
In Coração tão branco de Javier Marías, p 262.
In Coração tão branco de Javier Marías, p 262.
Desenho de Jillian Tamaki
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