domingo, fevereiro 14

Netherland


«E acontecera, mais uma vez, uma daquelas conversas planeadas que rapidamente perdem o rumo, que nos deixam apenas com raiva, uma raiva elucidativa, neste caso, em que tudo me regressou à memória sob uma luz crua: o arrefecer do nosso casamento, os dois anos em Nova Iorque em que ela me negara os beijos na boca, em que mos negara silenciosa e sistematicamente e sem queixas, desviando até os seus olhos, quando os meus os procuravam emocionados,cultivando em todo esse tempo uma domesticidade conscienciosa e uma ética maternal que a isentavam de culpa, impedindo-me de me aproximar, impedindo-me de encontrar falhas ou sentimentos, esperando que eu perdesse a coragem, que abandonasse as minhas vontades e as minhas expectativas mais humanas, que carregasse os meus fardos em segredo, e nunca, no meu tempo de luto, ela se referira à minha mãe, nem mesmo quando comecei a chorar na cozinha e deixei cair uma garrafa de cerveja ao chão, tal era a minha tristeza. Rachel limitara-se a limpar o chão com guardanapos, sem dizer uma palavra, e depois passara-me a mão livre pelo ombro - pelo ombro! -, quando levava os guardanapos ensopados para o caixote do lixo, nem um abraço, e não por falta de compaixão, mas porque receava que lhe pedisse outros gestos de carinho, um pedido que a obrigaria a reconhecer uma repulsa mais íntima, repulsa pelo seu marido ou por si própria ou por ambos...»

in, "Netherland" de Joseph O'Neill
Imagem Edel Rodriguez, The New York Times

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