segunda-feira, abril 23

A bata fendida de cima a baixo



Na cama um, Levy Martins, judeu, 59 anos, empresário. A enfermeira Cláudia com a sua voz de barítono perguntou se devia pronunciar Levy à maneira francesa ou se um Levy grave. O senhor Levy, habituado à dúvida, pronunciou de imediato o seu nome em francês. Ocupava a cama toda. Homem largo e baixo, carnes maciças, olhos profundos e seguros, barbas longas e frisadas que lhe escondiam o pescoço. Num rosto carregado um nariz bem definido, cabelo revolto puxado para trás deixavam à vista duas longas entradas. Só os braços rotundos marcados por nódulos gigantescos, intumescências arroxeadas e múltiplas picadas denunciavam um passado de cirurgias, enfartes e diabetes, que o levavam a reivindicar, impacientemente, a urgência do cateterismo agendado. Já conhecia as demoras hospitalares, tinha fome, queria ir para casa cedo.
- Enfermeira, por favor, traga-me o urinol.

Na cama três, o senhor Francisco. Transportaram-no para o quarto por volta das dez e meia da noite. O senhor Francisco vinha enrolado em si e sobre a cadeira de rodas. Os braços longos e curvos, as mãos  ósseas e esquálidas caíam pelas pernas a baixo e fechavam-no ainda mais. Puxaram-no penosamente pelo tronco, entreabriu-se a custo com gemidos guturais, quase inaudíveis. Colocaram o corpo na cama.

- Vá lá, Senhor Francisco ajude um bocadinho.

Pela parte de trás da estúpida bata fendida, o corpo tolhido expunha-se de cima a baixo: completamente seco, descarnado, de pele esquálida que lhe desenhava as vértebras, a pélvis, os fémures longos, de um amarelo translúcido que se espalhava por todo o lençol. A cabeça inclinada para trás afundava-se na almofada, e os olhos, salientes num rosto sugado pelo vácuo, fixavam a parede. A boca sempre aberta, chupada e imóvel, não articulava nada.

– Vá lá, senhor Francisco beba um bocadinho de água.

 E a água escorria pelos cantos da boca fora. Engasgava-se em pequenas convulsões sem que o corpo petrificado se soltasse.
- Descanse agora um pouco, senhor Francisco.

Mas não. O Senhor Francisco não parou mais, numa luta desigual, lenta, numa agitação caótica com o lençol que o cobria, com a fralda, com a gaze que lhe envolvia os dedos dos pés, com a bata verde fendida presa por um simples laço ao pescoço, numa agonia tremenda como se tudo estivesse feito contra ele.
Exausto. Completamente nu. O olhar paralisado, obtuso, fito na porta, como quem espera por ser chamado.

- Oh, senhor Francisco, o que é isto?
- Está todo molhado! Isto não se faz, 

E eu ali, 59 anos, salvo por um cateterismo, sem dor, perante um quadro lúgubre de final da Idade Média - a degradação de um corpo descarnado e ressequido, e o alerta «Tu serás em breve como eu um cadáver horrendo pasto dos vermes» (túmulo do Cardeal Jean de la Grange).

quarta-feira, abril 4

SAPIENS, Yuval Noah Harari. O animal que se tornou um deus

«Apesar das coisas espantosas que os humanos são capazes de fazer, continuamos sem ter a certeza dos nossos objectivos e parecemos estar mais descontentes do que nunca. Avançámos das canoas para as caravelas, para os barcos a vapor, para vaivéns espaciais - mas ninguém sabe para onde vamos. Estamos mais poderosos do que alguma vez estivemos, mas não fazemos a mínima ideia do que fazer com todo esse poder. Mas pior ainda é que os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses autoproclamados, com apenas as leis da física para nos fazerem companhia, não somos responsabilizados por ninguém. Estamos, assim, a espalhar o caos sobre os nossos companheiros animais e o ecossistema envolvente, em busca de pouco mais do que o nosso próprio conforto e divertimento, sem, no entanto, nos darmos por satisfeitos.
Existirá algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?»
Sapiens, Yuval Noah Harari. Elsinor