O som dos spikes metálicos dos sapatos no
granito das escadas íngremes do Pavilhão marcava a inquietude e a ansiedade de
um tee time cada vez mais próximo. Mas tudo começara no dia
anterior. Na limpeza meticulosa dos ferros Wilson que a prima
da américa oferecera, na escolha da bola ainda embrulhada em celofane e
reservada para a ocasião, na verificação da quantidade e do tamanho dos tees,
no esticar e dobrar da luva encarquilhada, no toque no quarto de dólar
americano que marcaria a bola nos greens. O polo azul Fred Perry e
as calças de cor clara, já vincados pela mãe para lá das recomendações, e o
brilho puxado nos sapatos fechavam, com o grau de discrição que a timidez exigia, mas também com o cuidado subtil de não passar despercebida, uma
composição elegante.
E depois a noite longa, demasiado longa, de olhos
apertados, a volta delineada nas voltas da cama, pancada a pancada, de uma
regularidade e perfeição impossíveis, e o tempo que nunca mais passava,
irrequieto e enervante, que o atirava para o relógio vezes sem conta. E
quando o cansaço parecia vencer, a manhã precipitava-se. O alvoroço perturbava
o silêncio de domingo e a surpresa disfarçada da mãe recordava-lhe as horas que
ainda faltavam para o torneio, “Não é só à tarde?” Sim, era.
O Pavilhão, não sei porque lhe chamávamos assim, era
uma antiga fonte de águas termais adaptada a clubhouse do
campo de Golfe de Vidago. Entre o pavilhão e o tee do buraco 1
passava a avenida que ligava a fonte termal nº2 à fonte Salus, na extremidade
do parque. Esta longa e longilínea avenida, apertada por plátanos, de
saibro meticulosamente varrido, limitava, à direita, todo o percurso do primeiro
buraco e servia de verdadeiro teste aos nervos de qualquer jogador. Mas era no
perímetro do primeiro tee, em frente ao Pavilhão, que o espetáculo decorria.
Tarde de domingo, bancos de madeira vermelhos vivos reservados desde cedo pela
gente da terra que por ali ficava. Conhecedora dos meandros deste jogo elitista
contrastava com a perplexidade dos aquistas que por ali passavam e que,
surpreendidos pela estranha coreografia no relvado imaculado, paravam por
breves momentos. A azáfama de jogadores e as correrias dos caddies até
ao parque de estacionamento na disputa dos golfistas mais generosos rematavam o
ambiente de festa. O afã que precedia as saídas das diversas formações de
jogadores repetia-se, e o burburinho só diminuía pelo avançar do jogador
chamado pela voz do starter e pelos primeiros movimentos de
ensaio que precediam a posição definitiva.
Mas quando a nossa vez se aproxima já pouco se ouve e pouco
se vê. A barriga aperta ainda mais, o tempo
escoa-se. Quando avançamos para as marcas de saída, aqueles dez
ou onze passos, aparentemente resolutos, deixam-nos sós num palco verde
constrangedor. E então, orquestrados pelo código de um jogo que exige silêncio
quando alguém se posiciona, toda aquela gente para e todos se centram em nós. É sempre nesta altura que alguém tosse, alguém se aproxima ainda, alguém diz
uma palavra mais, alguém continua a andar no saibro da avenida para a fonte, e
é nesse momento que a voz se faz ouvir de novo sobre as outras distraídas e
exige que tudo pare. E é essa voz que perturba ainda mais, e todos param e sabemos que todos, sem exceção, se viraram para nós e esperam. E é nessa
altura que se ouve o bater do coração e queremos sair dali. E tudo se precipita
de uma forma mecânica: bola em cima do tee, três ou quatro passos atrás, movimentos de
alongamento do corpo com swings ritmados num crescendo de vigor, memorização de
um ponto para o alinhamento, regresso à posição definitiva, aproximação do
ferro 2, ligeira correção da altura da bola, verificação da posição dos pés e mãos, olhar rápido para o objectivo, rosto apertado, olhos fixos na bola. O movimento de backswing,
que devia ser mais lento e amplo, acelera para lá das rotinas que o treino
parecia ter consolidado e desmorona a elegância necessária ao movimento. A correção instintiva do movimento transforma o final do voo da bola, vergonhosamente curta
para um adolescente, numa curva para a direita roçando os plátanos da avenida.
O embaraço espelha-se imediatamente no rosto após o som da pancada e alastra à gente mais velha da terra que não precisa de se levantar.
Mas é de lá que vem o
toque no ombro ou a frase reconfortante, “Força, Ni!”.