quarta-feira, maio 23
domingo, maio 20
Cartas e Recordações, Saul Bellow
«Não deves ser muito dura com o teu egoísmo. A Bíblia diz: «Eu,
porém, sou um verme e não um homem.» Quando se trata de sermos duros connosco,
a Bíblia está muito à nossa frente. Na verdade, os ateus não conseguem saber
quão insignificantes são. Provavelmente, acontece o mesmo com os agnósticos. Só
obtêm um adiamento»
Saul Bellow, Cartas e Recordações, Quetzal
quinta-feira, maio 3
Ressentiment
«Na sua presciente crítica à noção neoliberal da liberdade individual, Rousseau afirmara que os seres humanos não vivem para si próprios nem para o seu país numa sociedade de comércio onde o valor social se forma a partir do valor monetário. Vivem, sim, é para a satisfação da sua vaidade, ou amour propre: o desejo e a necessidade de assegurar o reconhecimento pelos outros, de ser-se estimado por eles tal como estimamos a nós próprios.
Mas, como salientou Kierkgaard, quem procura a liberdade individual deve fugir da prisão em que a sua própria reflexão o mantém e, a seguir, da vasta penitenciária construída pela reflexão dos seus associados. Nunca encontrará a liberdade nos espelhos confinantes, próprios das barracas de ilusões das feiras, do Facebook e do Twitter. Porque a vasta prisão das imagens sedutoras não cura as feridas que apetece coçar e coçamos, sem parar, do amour propre. Pelo contrário: mesmo o mais festivo dos espíritos de uma comunidade disfarça a competitividade e a inveja causadas pela exposição constante ao êxito e ao bem-estar por parte dos outros.
Como avisou Rousseau, o amour propre está condenado a ser perpetuamente insatisfeito. Demasiado banal e parasitário das opiniões inconstantes, sustenta na alma o desagrado de cada pessoa por si própria e alimenta o ódio impotente pelos outros. O amour propre pode degenerar rapidamente numa tendência agressiva, onde o indivíduo só se sente reconhecido quando é preferido em vez dos outros e quando pode regozijar-se com a abjeção deles. Como concisamente disse Gore Vidal, Triunfar não chega. Os outros devem falhar.
O ressentimento pode parecer uma consequência natural da
procura, à escala mundial. Da riqueza, do poder, do estatuto e da excitação
estéril a que o capitalismo obriga: embora torne algumas pessoas ricas, o
capitalismo expôs as diversas disparidades de receita e de oportunidades e
deixou muitos a improvisarem desesperadamente máscaras alegres para usarem na
selva social. Os meios de comunicação digitais melhoraram inquestionavelmente a
tendência humana para a comparação constante da vida de cada um com as vidas
dos que parecem ser os afortunados.
Mas o extremismo palpável do desejo, do discurso e da ação
no mundo de hoje também provém de algo que é mais insidioso do que a
desigualdade económica e a sociabilidade insocial. Tem a mesma origem das
milhentas revoltas e rebeliões românticas da Europo do século XIX: a
incompatibilidade entre as expectativas pessoais, aumentadas por uma rutura
traumática com o passado e a realidade cruelmente indiferente da mudança
vagarosa. Os seres humanos tinham sido libertados, em teoria, da estase da
tradição para poderem empregar as suas capacidades, movimentarem-se livremente,
escolherem as suas ocupações e vender e comprar de quem quisessem escolher. Mas
a maioria descobriu que na prática, as noções do individualismo e de mobilidade
social são irrealizáveis.
Continua a ser exigido muito, como antes, à população
largamente juvenil no mundo. Aceitar as convenções da sociedade tradicional é
ser-se menos do que um indivíduo. Rejeitá-las é chamar a si um peso intolerável
em condições que, frequentemente, são mesmo desencorajadoras. Por isso, dois
fenómenos que foram muito observados na sociedade europeia do século XVIII – a anomia,
ou mal-estar do indivíduo sem amarras que só muito por alto é que se parece atender
às normas sociais, e a violência anarquista – estão agora surpreendentemente
muito generalizados. Seja na Índia, no Egito ou nos EUA, vemos hoje a mesma
tendência dos desiludidos para se revoltarem e dos que se sentem confusos para
procurarem refúgio na identidade coletiva e nas fantasias de uma nova
comunidade.»
Pankaj Mishra, Tempo
de Raiva, Temas e Debates
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