Já todos sentimos aquele súbito
tremor na vista e o frémito que percorre a espinha, aquele desconforto, aquela
agitação interior perante o inesperado, perante o belo. Ou, como neste caso, perante o feio.
Apareceu de vestido de cetim branco,
rodado, pelo joelho. A pele clara das costas, os ombros e os braços nus ganhavam
um protagonismo inusitado. Preso do pescoço até a uma cintura subida, um
emaranhado de pregas, franzidos e acessórios dourados diluíam por completo uns
seios firmes e um corpo helénico. O trabalho com os cabelos foi devastador. O cabelo
liso deu lugar a um elaborado e confrangedor penteado de madeixas e caracóis. Os
brincos, arrecadas da avó de filigrana fina, baloiçavam incessantemente. E não
soube parar, os olhos retocados a tons suaves e os lábios pintados desfiguraram
irremediavelmente um rosto cândido. Para acentuar o desastre da composição, escolheu
uns sapatos claros de salto alto a condizer.
Enquanto caminhava ao seu
encontro, o jovem professor viu que Dalva transformara-se numa boneca
espanhola desarticulada.
Viu-o desconcertar-se, pestanejar, entreabrir os lábios para não dizer nada. Ficou pálido.
«Vamos», balbuciou.
Emudeceu.
Os dias eram demasiado quentes e
secos para os primeiros dias de junho. David passava pontualmente às seis e
meia de regresso à casa alugada por um grupo de professores. Foi colocado a
meio do ano letivo após ter terminado o serviço militar obrigatório. Alto,
cabelo curto, de tez morena - reflexo da vida militar, David fora convidado a
partilhar a casa com outros sete professores. A “casa dos professores”, uma
verdadeira república nas palavras do padre da paróquia, era local de pouco
sossego: saídas pela noite dentro, folias e folguedos a desoras, jantares
prolongados no terraço com os muitos amigos que por lá pernoitavam. Não demorou
muito tempo para que a casa fosse vista, na perspetiva dos olhares das viúvas
da aldeia, como um local pouco recomendável pela suposta promiscuidade que por
lá reinava e à qual o padre fizera na missa de domingo, embora velada, uma
referência depreciativa às mulheres que a habitavam.
Às seis e meia, o carro percorria os metros
finais de uma estrada que acabava naquela terra isolada do Douro – Pedregal. Apesar
do rio a escassa distância, aquelas terras não beneficiavam das vantagens da zona
demarcada do vinho do porto. Terra pobre em concelho pobre. Devastada pela
emigração que lhe levara os homens, Pedregal era terra de amazonas. Mulheres robustas,
precocemente gastas, touca e avental, saias largas pelos joelhos, pernas nuas, braços
fortes e tisnados, carregavam, ao final da tarde, cestos, produtos da terra,
enxadas, filhos pequenos, trouxas dos filhos e da casa, e animais.
Dalva era a mais nova dos cinco
filhos da proprietária da venda da aldeia. Ficara ela. Quatro anos antes, trocara
com agrado os estudos para cuidar da doença da mãe e do pequeno negócio. Com os
seus 20 anos, os dias eram demasiado longos para ela. Dormia até tarde, substituía
a mãe na hora da preparação do almoço, aviava as velhas viúvas da aldeia,
recebia o correio, lia as cartas de França ou da Alemanha, cumprimentava o velho
padre da igreja em frente, que não evitava em olhá-la demoradamente alertando-a,
com o sotaque arrastado e cantado do Porto, para os perigos de tanta beleza, «Dalbinha! Dalbinha!». Pela tarde, como
em todas as tardes, sentava-se no banco de pedra à porta da loja a respirar, entediada.
Entrava ocasionalmente para atender o telefone, chamar um carro de praça de
Santa Marinha, despachar um cliente esporádico, e voltava para o banco à sombra da
roseira retorcida de pequenas rosas escarlate. Conversava com os velhos da
aldeia que por ali ficavam, simplificava na roupa, descuidava-se na postura naquelas
tardes quentes. Não nos olhares para o professor que passava religiosamente àquela
hora.
Quando o motor do Fiat se fazia ouvir, já Dalva
tinha alongado o corpo, prendera melhor o cabelo, colocara-se na posição mais
favorável. E eram tantas, Dalva, filha de Júpiter. No momento fugaz em que cruzavam
os olhares, Dalva esboçava, sem se descompor, um ligeiro sorriso atrevido. E
era aquela postura de felino e aquela simplicidade que a tornavam, aos olhos de David, surpreendente bela. Como o comovia aquele toque de aparente
negligência. As t-shirts e as calças de ganga que usava habitualmente
desenhavam-lhe um corpo magnífico. E ela sabia-o. O padrão não variava: fundo liso,
riscas finas brancas horizontais adossadas a outras vermelhas ainda mais finas contornavam
e realçavam os volumes de um busto perfeito e de uma cintura jovem. Os cabelos
castanhos com laivos dourados apanhados atrás deixavam o rosto e, sobretudo, o
sorriso brando superar a frieza da perfeição clássica.
O calor do fim do dia parecia ter
atingido o pequeno carro pelas curvas da margem direita do Douro. Seguia em
sentido contrário ao rio. Dalva mostrava-se entusiasmada com o convite para uma
noite na discoteca com os amigos de David e tudo fez para que os monossílabos
bruscos e o amuo dele se dissipassem. Tinha percebido desde o primeiro momento que
algo o perturbara e, sem alterar a rotina dos meses anteriores, colocou, como
colocava sempre, a mão na perna dele e esperou que a mão dele a tocasse, como
tocava sempre. Deixou, como só as mulheres sabem, e sem que houvesse menor
indício de vulgaridade naqueles descuidos, que o próprio percurso sinuoso do
rio deixasse assomar o joelho redondo, a coxa lisa, que o vestido se descompusesse
e deixasse, por momentos, que parte do seio direito se visse. A mão que sempre
a tocara não escondia o mau estar nem o silêncio obstinado. Rodava impacientemente
o botão do rádio, tirava e punha cassetes, rebobinava-as, guiava olhando a
estrada de testa congestionada pela aversão. Não sabia como comportar-se, ou
para onde ir, o que dizer. Não encontrava, no fundo, uma justificação para
desistir da noite com os amigos. Podia ter-lhe pedido que tirasse o vestido
branco de cetim e voltasse aos jeans e tshirt, mas a ideia de condicionar alguém
estava fora das suas cogitações.
O mau humor não se dissipou ao
jantar. Comeram pouco e quando David por breves momentos a olhou nos olhos,
Dalva percebeu o pânico instalado no namorado. Não o inquiriu nem o condicionou.
Falou do livro que andava a ler - porque lia noite dentro, dos livros que a
despertaram para o hábito da leitura, de Eça
de Queiroz, fez referências pormenorizadas aos lugares de A Cidade e as Serras, que tinha como
cenário aquela zona. Pela primeira vez, Dalva falou mais do que ele. E fê-lo
com graciosidade, sem aparente esforço, como
diriam os italianos do quattrocento,
com sprezzatura. David percebeu
nessa altura que não só desconhecia o que Dalva lia, o que ouvia, do que mais
gostava, mas também se tornou ainda mais claro de que ela o amava. Desde que o
conhecera, passara a ser não só o porta-voz de um mundo novo como também o
próprio mundo. Gostava de o observar, como se movia, como se comportava. Talvez
fosse a melhor maneira de o conhecer. Mais, escutava-o. Mais, estava-lhe grata.
Mesmo resignado, a má disposição
de David não se desvaneceu por completo e o resto do percurso foi marcado
pelo entusiasmo moderado e pela ternura discreta de Dalva, que nunca provocaram
nele qualquer tipo de constrangimento. Virou-se mais para si, para as músicas
dela, e que eram também as dele:
Louis
Amstrong,
Nat King Cole, em
espanhol, uma descoberta para ela, e, sobretudo, as de
Ella Fitzgerald que lhe pareceram as mais adequadas para retirar o
companheiro do ambiente soturno em que se metera. Conhecia-as de cor. Suavemente,
na penumbra que os envolvia, sobrepunha a sua voz à de
Ella.
Dedicated to you
era canção preferida de David, e Dalva cantava-a baixinho,
«If Ishould write a book for you/ … / That book would be like my heart and me/Dedicated to you» e tornava a sua voz imperceptível durante
parte do tempo dando espaço à surdina do trompete, à orquestra, aos
pensamentos, regressando para sublinhar,
«If I should find a twinkling star/ One half so wondrous as you are/ That star would be like my heart and me /Dedicated to you», prolongando, para além da
voz de
Ella, o
u em diminuendo
.
Chegaram mais cedo que os amigos à
discoteca e sempre que alguém entrava, o coração de David saltava. E tal como
ele previa, aconteceu o que mais desejava e, também, o que mais temia: Luísa
também viera.
Deixara-o há alguns meses. Mulher de
mil encantos, mulher que moldou os seus gostos, mulher que ocupou obcecadamente
todos os seus pensamentos. No dia em que a conheceu, não conseguiu dormir; quando
soube do interesse dela em voltar a sair com ele, não acreditou; quando lhe deu
o primeiro beijo, não soube se devia rir ou chorar. Portuense, aluna da
faculdade de medicina, Luísa falava, ao contrário do que seria de esperar, de
cinema e de teatro, recomendava o cinema fantástico do Fantasporto, referia, a
miúdo, as propostas alternativas do FITEI (festival de teatro do Porto) e
gostava, em particular, de livros, dos sul-americanos - tão em voga com o
prémio nobel de Garcia Marquez. Mas era de poesia que falava com mais
entusiasmo. Iniciou-o em Fernando Pessoa, nos heterónimos, mostrava preferência
por Ricardo Reis, lia-lhe os modernistas portugueses. David sucumbiu não só
à beleza de Luísa, mas também ao poder da palavra, ao entusiasmo, às escolhas
que fazia, ao cosmopolitismo de Luísa. Quando terminou a relação, falta
dizê-lo, fê-lo com a delicadeza que se esperava: transcreveu um poema de Mário de Sá Carneiro na página
dedicatória do livro que lhe oferecera - «Um
pouco mais de sol – eu era brasa / Um pouco mais de azul – eu era além / Para
atingir faltou-me um golpe de asa …. Se ao menos eu permanecesse aquém …»
e terminava com a ideia de que ao ler o livro David compreenderia melhor a
decisão dela.
Um enigma que o havia de
consumir.
Estava mais magra e, como muitas
vezes acontece, tornara-se ainda mais bonita. Mantinha uma elegância fora do vulgar, um pouco
francesa misturada com uma certa travessura italiana. O cabelo liso e negro pelos
ombros, risca ao meio bem desenhada, pele morena, olhos de suave recorte
oriental reflectiam requinte e sofisticação e, para além disso, o mistério das
mulheres belas. E mulheres belas, especialmente se ainda são
inteligentes, provocavam em David um tremendo sentimento de insegurança.
Quando viu David, o olhar de Luísa
passou por brevíssimos instantes por ele para se fixar de imediato na companheira do lado, em Dalva, numa avaliação imediata, instintiva, precisa,
para lá do cetim branco e das arrecadas de filigrana fina, para voltar de novo
a David. O sorriso alargou-se, familiar, sedutor, de resgate. Luísa vira uma
igual. Dalva, apesar de surpreendida, compreendeu de imediato tudo. David não foi
capaz de fazer mais nada senão olhar para a universitária, enfeitiçado. Ficou
embaraçado, terrivelmente embaraçado, e o muito que sentiu foi sobretudo
expresso pelo pouco que disse.
Foi uma noite de silêncio,
espaçada por risos nervosos e galanteios. David manteve-se próximo de Dalva, mas
não se esquivou nem quis às conversas curtas e recorrentes de Luísa nem aos
seus subtis sinais de afecto. O barulho obrigava-os a aproximarem os rostos
para se ouvirem. Invocavam um passado recente, recordavam episódios entre os
dois, não evitavam tocar-se. David absorvia cada gesto, cada sorriso, cada palavra, mesmo sem as perceber. O simples fluir do som que as palavras produziam, a
intimidade da conversa, excitavam-no.
Não conseguiu ocultar os sentimentos,
que é, como alguém disse, o primeiro passo no sentido das maneiras civilizadas.
É o risco que a pessoa corre quando se apaixona. Arrisca-se a perder a
dignidade.
Dalva, Dalva, filha de Júpiter.
Dalva, circunspecta, colocava a
mão na perna dele num último esforço para o agarrar, e só a retirou, num gesto
instintivo, quando Luísa fez referência a Aquellos
ojos verdes de Nat King Col e em
particular a Dedicated to you, de Ella Fitzgerald.
Dalva inclinou-se, e com uma tremura na voz
embargada suplicou-lhe ao ouvido, «Vamos …?» - desviando o olhar, escondendo-o.
Estava só. Sentia-se uma intrusa num ambiente adverso.
Num lampejo de lucidez, David percebeu o desconforto e o abandono da namorada.
Era tarde. Tudo estava em ordem: o
carro verde seguia agora no mesmo sentido do rio. O Douro brilhava do lado
esquerdo. O contorno dos ciprestes, esguios e nítidos, que pontuavam a paisagem duriense entrava
pelo céu claro daquela noite sem ar. O silêncio só era perturbado pelas janelas
abertas e pelo barulho de um motor apático.
Embora por diferentes razões, o
silêncio entre eles exprimia tudo o que sentiam. Não foi pronunciada uma única
palavra. Tiveram a inteligência de não falar. Não se pode prever as
consequências que as palavras podem causar, os mal-entendidos, o efeito
explosivo. De olhar quase cego, com o vento no rosto, David não conseguia
esquecer as palavras que ouvira nem o beijo fresco de despedida no canto da
boca. Luísa sabia que por esse último beijo seria sempre recordada. Como
traduzir aquele beijo em palavras? Enquanto o silêncio perdurou, repetiu mentalmente,
uma e outra vez, as conversas, misturando o que ouvira com o que tinham dito e
com o que desejava ter dito. Atribuiu significados aos mais pequenos gestos,
aos olhares, interrogou-se, especulou, procurou as palavras certas, reconstruiu
diálogos, esboçou sorrisos. Tudo lhe parecia mais nítido.
Quando o carro se preparava para desviar
do rio, a escassos quilómetros da aldeia, Dalva, num gesto de condescendente
ternura, colocou, como colocava sempre, a mão na perna dele e a mão dele, num
gesto espontâneo de contrição, tocou-a de imediato, como fazia sempre.
Do promontório via-se o rio ao
fundo, apertado por montes e vinhedos. Há muitos no Douro, mas aquele fora o
primeiro local que David escolhera para passar as tardes de ócio. Um pequeno
desvio em terra, ladeado por olmos, castanheiros, giestas, escondia o carro, deixando-o
suspenso com o rio aos pés. Era ali que passavam as tardes. Dalva sentia-se à
vontade, aliviada, de brilho nos olhos. A mão que colocara na perna dele,
já afagara a mão de David, já notara a excitação, já repousara lá. O Fiat 127
verde estava de frente para um rio largo, brilhante. Dalva retirou os brincos,
soltou o cabelo, já descalçara os sapatos de salto. Passou para o banco de trás
com a desenvoltura de quem o fizera de outras vezes. David seguiu-a.
Sentou-se primeiro. E ela em cima. Virada para ele. O vestido de cetim branco
rodado facilitou o contacto quente dos corpos. Inclinou a cabeça na direção do
peito e permitiu que David retirasse, de um gesto só e como que por magia, as
pregas, os folhos e os franzidos que escondiam os seios rijos. Na memória
dele, toda a
noite, a pouca luz e toda a beleza se imobilizaram nesse momento. O
momento em que a imagem de Dalva superava os mestres barrocos e tornava-se numa
obra-prima viva, sedutora, eloquente. A luz de um luar quase pleno contrastava
um corpo firme de uma voluptuosidade estonteante. Os lábios dela, luxuriantes e
ternos, redimiam-se de um silêncio atroz. Dalva oscilava entre a meiguice e o
enliçamento animal. Esmagavam as bocas, mordiam-se, chupava-lhe as mamas
túmidas, paravam para ganhar fôlego e era nestes instantes, presos pelo sexo,
que se olhavam deslumbrados.
«Amo-te», sussurrou-lhe ao ouvido
pela primeira vez. Dalva sorriu.
David sabe, hoje, que a bela
Dalva – a bela Afrodite, pertencia ao grupo de mulheres que, a começar pelo
corpo e a acabar na alma, se tornaria a mulher perfeita. A verdade, no entanto, é que se
tornara evidente que apesar de todos os seus encantos – a sua ternura, a sua beleza,
o seu riso fácil – David nunca poderia amá-la. David tinha um enigma que o
consumia.